O intelectual de direita

Daniel Day-Lewis como o pedante Cecil Vyse em Uma Janela para o Amor (1985), de James Ivory

Hoje, ao ler mais um texto sobre Bacurau em que a reação dos moradores ao ataque que sofrem é problematizada por responder à violência de forma também violenta, lembrei de um trecho do escritor francês Michel Houellebecq em Submissão (2015), no qual ele discorre sobre essa figura tão curiosa que é o “intelectual de direita”:

“Ele tinha um jeito de intelectual de direita muito sedutor, pensei, isso lhe daria uma certa singularidade na faculdade. Podemos deixar as pessoas falarem bastante tempo, elas estão sempre interessadas no próprio discurso, mas, ainda assim, de vez em quando convém interferir, um mínimo que seja. (…) Por pouco não perguntei a Lempereur: “Você está mais para carola, fascistoide, ou é uma mistura dos dois?”, antes de me recompor. Decididamente eu tinha perdido o contato com os intelectuais de direita, já não fazia a menor ideia de como lidar com eles.”

Embora muitos desses espécimes sigam por aí, insistindo sempre no clássico corte de cabelo escovinha com topete bem armado, também não pude deixar de pensar que em matéria de intelectuais de direita o Brasil já esteve bem melhor servido em outras épocas.

O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, 50 anos

Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o matador de cangaceiros

 Em 2019, comemoramos os 50 anos de lançamento de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Maior sucesso comercial da carreira de Glauber Rocha, o filme conquistou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes de 1969 e garantiu ao cinema brasileiro a sua primeira capa na prestigiosa revista Cahiers du Cinéma.

Essa dupla façanha de um mesmo filme brasileiro – premiação em Cannes e capa da Cahiers – só se repetiria este ano, com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, vencedor do Prêmio do Júri na última edição do festival francês e capa da edição de setembro da Cahiers, que acaba de chegar às bancas. Não por acaso, o reconhecimento acontece justamente com um filme que estabelece um diálogo direto com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Para festejar as 50 primaveras deste monumento do cinema nacional, resgato aqui um texto que escrevi para o encarte da edição em DVD de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro pela Programadora Brasil, iniciativa do Ministério da Cultura que visava a difusão do cinema brasileiro. Um projeto sensacional, que infelizmente acabou, assim como acabou o Ministério da Cultura, assim como está acabando Brasil.

O filme de Glauber na capa da Cahiers du Cinéma

Neo-western dialético

Quarenta anos depois de sua estreia nos cinemas, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro finalmente pode voltar a ser apreciado da forma como Glauber Rocha o concebeu. Um minucioso processo de restauração recuperou as cores da fotografia de Affonso Beato, revelando para as novas gerações a plasticidade exuberante deste neo-western violento e excessivo, uma indiscutível obra-prima do cinema brasileiro moderno.

Primeiro longa-metragem colorido de Glauber Rocha, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro é um dos projetos cinematográficos mais ambiciosos do diretor baiano. Lançado em 1969, no auge da ditadura militar, após a publicação do AI-5, o filme procurava traduzir para o grande público as ideias do Cinema Novo, apresentadas numa trama que incorporava elementos do western americano e da literatura de cordel. Glauber resgata um dos personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o matador de cangaceiros Antônio das Mortes (Maurício do Valle), cuja má consciência lhe faz lamentar seu passado de sangue a serviço dos poderosos. Ao testemunhar o confronto de um coronel (Joffre Soares) com a população miserável de um pequeno vilarejo no interior do Nordeste, Antônio das Mortes poderá enfim se redimir, aliando-se a um professor (Othon Bastos), a Santa Bárbara (Rosa Maria Penna) e a Negro Antão (Mário Gusmão) – que representa São Jorge – para acabar com a injustiça no sertão. O tom alegórico e a encenação antinaturalista não atenuam a radicalidade do discurso político do filme, que fazia a defesa da reforma agrária e pregava a ação revolucionária como única possibilidade de enfrentar as desigualdades sociais do Brasil.

O esforço de Glauber foi duplamente recompensado. Além de ser o maior sucesso de público de sua carreira, O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro conquistou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, transformando-o em autor de prestígio internacional. Tamanha virulência crítica e repercussão midiática, no entanto, foram malvistas pelo governo militar, obrigando o diretor a exilar-se na Europa. Glauber só voltaria a dirigir outro longa-metragem no Brasil dez anos mais tarde, A Idade da Terra (1980), justamente seu filme-testamento, lançado um ano antes de sua morte, ocorrida em 22 de agosto de 1981.

Odete Lara, em um dos momentos mais belos do filme de Glauber Rocha

Um ponto alto de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro é a presença de Odete Lara, interpretando a esposa adúltera do coronel. São da atriz os dois momentos mais sublimes do filme: o assassinato do amante (Hugo Carvana) a punhaladas e a cena em que ela caminha pelo sertão com um longo vestido roxo e um buquê de flores de papel nas mãos. Duas sequências dignas de antologia, que ilustram os paradoxos do cinema de Glauber Rocha, em sua permanente oscilação entre beleza e horror.

Marcus Mello

O melhor blog de todos os tempos

O cineasta Carlão Reichenbach (1945-2012), além dos tantos filmes que dirigiu, deixou um legado precioso para seus fãs e admiradores: as centenas de publicações do blog que manteve entre 2004 e 2012. Durante 9 anos, estimulado pela facilidade de acesso à informação possibilitada pela internet, Reichenbach compartilhou com uma legião fiel e sempre crescente de leitores o seu imenso repertório cinematográfico, musical e literário, bem como as suas novas descobertas (a curiosidade de Carlão era insaciável).

O blog, que começou com o nome de Reduto do Comodoro, a partir de 2008 passou a se chamar Olhos Livres, e ainda pode ser parcialmente acessado.

Em pouco tempo, o projeto do blog teria desdobramentos como a Sessão do Comodoro, realizada mensalmente no Cinesesc – a primeira e histórica edição aconteceu em julho de 2004 e exibiu os cultuados Santa Sangre, de Alejandro Jodorowsky, e Canibal Holocausto, de Ruggero Deodato –, e o prêmio Quepe do Comodoro, no qual Reichenbach destacava diferentes iniciativas no terreno da cinefilia, a fim de reconhecer “o trabalho dos melhores sites nacionais sobre cinema, arte e cultura”. 

Em 29 de maio de 2012, poucos dias antes de morrer, Carlão fez a última postagem no blog, divulgando a exibição do filme Banho de Sangue, de Mario Bava, em sua sessão no Cinesesc.

Para quem quiser acessar algumas das maravilhas compartilhadas pelo saudoso Reichenbach, o endereço http://olhoslivres.zip.net segue disponível. Infelizmente os primeiros anos do blog sumiram da rede (o endereço http://doiscorregos.blog.uol.com.br leva à página inicial do UOL).

Arrisco a dizer que os textos e as indicações compiladas por Reichenbach nesse espaço virtual equivalem a um curso de cinema ministrado pelo melhor e mais generoso dos professores. Entre as tantas preciosidades ali encontradas, merecem destaque as tradicionais e ansiosamente aguardadas listas com sugestões de filmes, que sempre evitavam o óbvio e faziam a alegria dos leitores (o essencial do cinema extremo, o essencial do filme musical americano, performances antológicas do cinema brasileiro, o essencial do filme noir, o essencial do filme de gângster, o essencial do faroeste americano, e por aí vai…).

Um material que deve ser preservado e mereceria uma edição em livro.

Mais uma tarefa para a super Sara Silveira, amiga e fiel produtora de Carlão?

Relatos de um certo Oriente

O curso sobre cinema chinês ministrado pelo crítico francês Jean-Michel Frodon na Unisinos no último mês de junho e o sucesso da mostra O Cinema do Ásia, atualmente em cartaz na Cinemateca Capitólio, me levaram a resgatar este texto, publicado na edição de número 13 da revista Teorema, em dezembro de 2008. O texto foi escrito a partir do impacto de vários filmes vistos na 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e da mostra Ásia: A Nova Onda Oriental, que organizei à época em que era programador da Sala P. F. Gastal. Essa mostra, realizada entre 28 de outubro e 9 de novembro de 2008, é uma das programações das quais mais me orgulho de ter feito, pois apresentou pela primeira vez em Porto Alegre o cinema de Apichatpong Weerasethakul, entre tantos outros títulos notáveis, incluindo duas obras-primas do diretor chinês Hou Hsiao-hsien nunca lançadas no Brasil, Millennium Mambo e Three Times.

Eventos recentes, como o ciclo Ásia: a Nova Onda Oriental, em Porto Alegre, e a 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, exibem filmes que atestam o vigor do cinema asiático contemporâneo

O Mundo, de Jia Zhang-ke

Nos últimos dez anos, os cinéfilos do Ocidente vêm sendo surpreendidos com a descoberta de um notável conjunto de filmes assinados por diretores de nomes impronunciáveis, como Hou Hsiao-hsien, Apichatpong Weerasethakul, Jia Zhang-ke, Wang Bing, Bong Joon-ho, Hong Sang-soo, Eric Khoo, Rithy Panh ou Naomi Kawase. Em comum, estes filmes têm a peculiaridade de serem produzidos em países do Extremo Oriente (Taiwan, Tailândia, China, Coréia do Sul, Singapura, Camboja, Japão), causarem comoção nos grandes festivais internacionais e permanecerem, em sua maioria, ignorados pelos distribuidores brasileiros.

Embora o rótulo “cinema oriental” ou “cinema asiático” seja pouco adequado para dar conta de um grupo tão eclético de realizadores, cada qual com propostas estéticas muito particulares, é preciso reconhecer que a arte cinematográfica vive um momento privilegiado no outro lado do mundo. Se não chega a causar espanto o fato de potências econômicas como a China e o Japão estarem apresentando uma nova geração de talentos, o mesmo não se pode dizer de países pequenos e de pouca tradição cinematográfica como a Tailândia, Filipinas ou Singapura.

A evidente impossibilidade de dar conta de tantos filmes e diretores relevantes em um único artigo nos obriga a focar a atenção em quatro nomes, que há pouco tiveram seus trabalhos mais recentes exibidos no Brasil: os chineses Hou Hsiao-hsien e Jia Zhang-ke, o filipino Brillante Mendoza e o tailandês Apichatpong Weerasethakul.

Mulheres tristes e ruínas

O descaso do circuito exibidor brasileiro em relação aos filmes de Hou Hsiao-hsien é um bom termômetro da nossa ainda precária condição cultural. Em outro contexto, a inclusão do veterano diretor (nascido na China em 1947, mas desde a infância radicado em Taiwan) num texto sobre novo cinema oriental seria no mínimo despropositada, em vista de sua vasta filmografia,  que remonta ao início dos anos 80 e contabiliza cerca de 20 longas-metragens. Aqui, no entanto, o despropósito justifica-se, pela ignorância quase completa das platéias locais diante do cinema de Hsiao-hsien.

Embora já tivesse recebido o Leão de Ouro de melhor filme no Festival de Veneza com A Cidade do Desencanto (1989) e durante toda a década de 90 fosse presença constante no Festival de Cannes – onde conquistou o Prêmio Especial do Júri por O Mestre das Marionetes (1993) –, é somente após o sucesso internacional de Flores de Xangai (1998) que o nome de Hou Hsiao-hsien passa a merecer maior atenção do público ocidental. Desde então, ele vem produzindo sucessivas obras-primas, a começar por Millennium Mambo, de 2001.

O extremo rigor identificado na filmografia de Hou Hsiao-hsien levou o governo do Japão a convidá-lo a assinar o filme em homenagem ao centenário do cineasta Yasujiro Ozu, Café Lumière (2003). Para celebrar o mais rigoroso dos cineastas, Hsiao-hsien oferece uma sutil releitura da obra-prima de Ozu, Era uma Vez em Tóquio (1953). Reduz ao limite a trama original do diretor japonês – pais viajam do interior a fim de visitar a filha que vive na capital – e compõe uma verdadeira sinfonia da metrópole, onde o movimento dos trens e a arquitetura opressiva da cidade adquirem a mesma importância que as deambulações da protagonista pelas ruas de Tóquio.

Depois de Café Lumière, Hsiao-hsien realizou Three Times (2005), logo seguido por A Viagem do Balão Vermelho (2007) – este último produzido na França, com Juliette Binoche à frente do elenco. O lamentável fato de nenhum desses filmes ter sido lançado no Brasil, nem mesmo no mercado doméstico, foi minimamente contornado pelas mostras Oriente Desconhecido (promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) e Ásia: A Nova Onda Oriental (realizada em Porto Alegre, por iniciativa da Secretaria Municipal da Cultura). Em resplandecentes cópias em 35mm, os cinéfilos dessas quatro cidades puderam conhecer Millennium Mambo e Three Times, dois dos mais inspirados momentos da carreira de Hou Hsiao-hsien.

Millennium Mambo, de Hou Hsiao-hsien

Ambos os filmes são protagonizados pela estonteante Qi Shu, que parece estar se tornando a atriz-fetiche do diretor (será a estrela de seu próximo longa, The Assassin). Em Millennium Mambo, ela é Vicky, jovem dividida entre dois homens, preenchendo o vazio das noites de Taipei com sexo, drogas e música eletrônica, enquanto espera o novo milênio chegar. Nas três histórias de Three Times, Qi Shu representa três personagens que testemunham o fracasso de seus relacionamentos amorosos em diferentes momentos da História (1911, 1966 e 2005). Em virtuosos planos-seqüência, elemento marcante de seu cinema, Hou Hsiao-hsien acompanha os movimentos rigorosamente coreografados dessas mulheres sempre tristes. Não importa o período histórico em que vivam, as personagens femininas de Hsiao-hsien parecem destinadas à infelicidade, seja pelas convenções sócio-culturais do passado (as cortesãs de Flores de Xangai e da segunda história de Three Times), seja em virtude da aridez de sentimentos nas metrópoles do século XXI (a menina grávida de Café Lumière, as personagens de comportamento sexual livre de Millenium Mambo ou da última história de Three Times).

Ao contrário do que ocorria em seus filmes anteriores, interessados em retratar os processos históricos e contradições da sociedade taiwanesa, a partir do final dos anos 90 Hou Hsiao-hsien passa a privilegiar a construção de atmosferas, colocando a narrativa em segundo plano e dirigindo sua câmera aos pequenos detalhes. O espectador ingênuo poderá dizer que nada acontece em Millennium Mambo ou Three Times, mas basta um olhar atento para descobrir que aquelas histórias mínimas encerram um universo de possibilidades sensoriais. Hsiao-hsien é um esteta que confia plenamente na força das imagens, a ponto de dispensar a palavra no segundo episódio de Three Times, esta obra encharcada de melancolia, com enquadramentos de beleza assombrosa, onde seu cinema atinge o ponto máximo de depuração estética.

*  *  *

O rigor da encenação e a preferência pelo plano-seqüência aproximam Hou Hsiao-hsien de Jia Zhang-ke (1970), principal nome do cinema chinês contemporâneo. Cineasta profícuo, com apenas 38 anos de idade Zhang-ke ostenta oito longas-metragens em seu currículo, e tem tido melhor sorte no Brasil que seu colega de Taiwan. Plataforma (2000) e Em Busca da Vida (2006) ganharam distribuição comercial no país. Exibido na mostra Oriente Desconhecido, O Mundo (2004) costumava frequentar a grade do canal Telecine, e em breve teremos a estreia nos cinemas do documentário Inútil (2007). Já seu último filme, 24 City (2008), esteve entre as atrações da 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro, justificando uma vez mais o entusiasmo da crítica internacional em torno de seu nome.

Grande cronista do processo de transformação pelo qual a China vem passando nos últimos anos, Jia Zhang-ke é assumidamente influenciado pelo cinema de Robert Bresson (de quem aprendeu lições sobre o uso do tempo e a preferência por trabalhar com atores não-profissionais) e Michelangelo Antonioni (que o inspirou na construção do espaço), embora muitos críticos insistam em associá-lo ao neo-realismo de Roberto Rossellini. O diretor chinês também costuma ser elogiado por sua habilidade em fazer uso da tecnologia digital, segundo ele a única possibilidade de registrar as mudanças frenéticas que atualmente ocorrem na China. Algo comprovado pela visão de O Mundo, ambientado num parque temático nos arredores de Pequim, onde estão reproduzidos alguns dos principais pontos turísticos do planeta. Naquele cenário surreal, Zhang-re reúne um grupo variado de personagens, formado pelos jovens empregados do parque, que devem lidar com diferentes dramas pessoais, enquanto atuam em shows de gosto duvidoso, oferecidos aos visitantes do local como uma alternativa para fazer turismo sem viajar. Irônico ao extremo, Zhang-ke representa o mundo globalizado como um grandioso espetáculo kitsch, oferecendo um retrato preciso de nossa atual condição de homens desterritorializados.

Em Busca da Vida, de Jia Zhang-ke

Em Busca da Vida, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2006, descrevia o impacto provocado pela construção da represa de Três Gargantas no rio Yang-Tsé. Com 24 City, Jia Zhang-ke volta a abordar o acelerado processo de mudanças em curso numa China cada vez mais capitalista e industrializada. O filme acompanha o fechamento de um complexo industrial que dará lugar a um condomínio de luxo. As consequências da chegada do empreendimento naquela comunidade são mostradas através de depoimentos de antigos funcionários da empresa e moradores da região. Zhang-ke utiliza um procedimento semelhante ao de Eduardo Coutinho em Jogo de Cena (2007), misturando depoimentos reais a outros encenados por atores – os “vasos comunicantes” de Borges em ação, a ligar um veterano documentarista brasileiro a um jovem cineasta chinês. Entre os depoimentos, imagens do desmonte da fábrica deixam claro que Zhang-ke está interessado sobretudo em mostrar o rastro de destroços deixado pela onda de progresso que varre a China. Já era assim em Em Busca da Vida, onde a gigantesca hidrelétrica de Três Gargantas permanecia sempre em segundo plano, como em 24 City estão os prédios do empreendimento imobiliário destinado aos novos ricos chineses. Edifícios em ruínas, vilarejos abandonados, casas destruídas, montanhas de entulhos. São estes cenários desolados que realmente traduzem o que está acontecendo hoje na China. Discípulo aplicado do filósofo Walter Benjamin, para quem a História era um acúmulo ininterrupto de ruína e destruição, Jia Zhang-ke funda seu cinema em torno da dialética construção/desconstrução. E vem pouco a pouco forjando uma obra de valor inestimável, não apenas pela sua relevância artística, mas por assumir a responsabilidade de ser um testemunho dos dilemas do nosso tempo.

Sensualidade e mistério

A maior novidade vinda do Extremo Oriente está relacionada à descoberta das emergentes cinematografias da Tailândia e das Filipinas. Dois países pobres e de tradição conservadora, frequentemente subjugados por governos ditatoriais, mas capazes de produzir um cinema de grande originalidade e rigor estético.

Um arquipélago com cerca de sete mil ilhas, entre o Mar da China e o oceano Pacífico, as Filipinas tem seu “exotismo” amenizado diante dos olhos ocidentais por conta de sua colonização espanhola. O país, que hoje produz uma média de 40 longas-metragens por ano, foi colocado no mapa cinematográfico internacional graças a Lino Brocka (1939-1991). Primeiro diretor filipino a competir no Festival de Cannes, com Insiang (1976), um drama ambientado nas favelas de Manila, Brocka notabilizou-se ao denunciar em seus filmes os desmandos do ditador Ferdinand Marcos. Passados dez anos da morte de Brocka, um grupo de jovens realizadores, liderado por Lav Diaz e Brillante Mendoza, deu início a um movimento de retomada do cinema filipino, assinando uma série de filmes que logo começariam a ganhar visibilidade no circuito de festivais europeus.

Ambos os diretores apresentaram seus novos filmes na 32ª Mostra Internacional de São Paulo.Lav Diaz trouxe o monumental Melancholia (2008), com oito horas de duração. Reconhecido como o principal mentor intelectual do novo cinema das Filipinas, o diretor é um bom exemplo da radicalidade daquela cinematografia. Seus filmes anteriores, Evolution of a Filipino Family (2004), Heremias: The Legend of the Lizard Princess (2006) e Death in the Land of the Encantos (2007), todos longuíssimos, vêm chamando a atenção da crítica não apenas pela sua prolixidade, mas sobretudo pela capacidade do diretor em sustentar narrativas complexas, que navegam contra a corrente das regras estabelecidas pelo mercado. Já Mendoza mostrou Serbis (2008), que teve sua primeira exibição no Brasil, depois de escandalizar espectadores mais sensíveis na última edição do Festival de Cannes com a crueza de suas cenas de sexo.

Antes de chegar à competição principal de Cannes, Brillante Mendoza havia vencido o Festival de Locarno com O Massagista, em 2005. Serbis é seu sexto longa-metragem. Aqui no Brasil, a exemplo do que já acontecera no balneário francês em maio, o filme voltou a dividir opiniões. Azar de quem não gostou. Desde Os Olhos da Cidade São Meus (1987), de Bigas Luna, o cinema não era celebrado com tamanha visceralidade. Obras como Serbis não almejam a unanimidade. Mas aqueles espectadores adultos que, além do cinema, amam as antigas salas onde os filmes de sua infância e juventude costumavam ser exibidos, deverão se render integralmente a Mendoza. Serbis acompanha um dia na vida da família Pineda, proprietária de uma sala dedicada à exibição de filmes pornográficos. Bem a propósito, a sala chama-se “Family”, pois além de abrigar o negócio familiar, o decadente prédio – cuja suntuosa arquitetura art déco denuncia um passado de dias melhores – serve de moradia aos Pineda e seus agregados. Neste ambiente caótico, a matriarca Nanay Flor (vivida pela atriz Gina Pareño, figura de presença hierática, a lembrar uma Irene Papas filipina) deve administrar o convívio dos filhos, netos e empregados com a animada audiência formada por prostitutas, gays e travestis. Pois, como toda boa sala pornô, o Family também é um cinema de pegação. Em suas dependências úmidas, as noções de público e privado se embaralham (melhor seria dizer “interpenetram”, para nos mantermos fiéis ao espírito de um filme onde a promiscuidade adquire um sentido positivo, até mesmo vital). O sexo, a mais íntima das atividades humanas, transforma-se numa experiência coletiva, o que o aproxima do cinema. Para Mendoza, o ritual de sentar numa sala escura ao lado de pessoas estranhas, em busca de fortes emoções sensoriais, pode ter a mesma intensidade da experiência sexual. Esta é a questão central de Serbis e o que faz dele um filme tão sedutor.

Serbis, de Brillante Mendoza

Encenador habilidoso, o diretor filipino sabe que um dos aspectos mais fascinantes do cinema reside na sua capacidade de captar as fricções entre corpo (do ator) e espaço (o cenário). Ao nos conduzir pelos diversos recantos do Family, colando-nos aos personagens que lá circulam, Mendoza torna praticamente palpáveis a viscosidade das paredes, a sujeira dos banheiros, a decrepitude dos ambientes, o suor dos corpos. É surpreendente como aquele universo fechado e a princípio distante – um cinema pornô nas Filipinas! – consegue nos parecer tão próximo.

Filmado em locação (o prédio do Family realmente existe e tem este nome), Serbis também demonstra o apurado senso de Mendoza para as potencialidades expressivas da cenografia, plenamente exploradas pelo competente trabalho da direção de arte. O resultado é um filme físico, que produz um efeito “rosa púrpura do Cairo”, sugando o espectador para dentro da tela. 

* * *

Mas é da Tailândia, ao oeste das Filipinas, que vem aquele que é o nome mais estimulante do cinema contemporâneo. A recente exibição no Brasil de seus três principais filmes, Blissfully Yours (2002), Mal dos Trópicos (2004) e Síndromes e um Século (2006), vem justificar o entusiasmo em torno desse jovem diretor, lançado pelo Festival de Cannes e logo adotado pelos críticos franceses, Cahiers du Cinéma à frente, como de hábito.

Não há nada que se compare ao estranhamento e ao impacto estético provocado pela descoberta da obra de Weerasethakul. Ao contrário de outros realizadores superestimados pela crítica francesa, estamos realmente diante de um cineasta-artista, alguém que tem algo a dizer sobre a condição humana e busca novas formas para fazê-lo.

O cinema de Apichatpong Weerasethakul representa um desafio constante para a crítica, porque está justamente interessado em discutir a impossibilidade da interpretação. Em Mal dos Trópicos, o relacionamento homossexual entre um soldado e um camponês dá lugar ao embate entre um homem-fera e seu caçador (vividos pela mesma dupla de atores) na densa floresta tailandesa. Em Síndromes e um Século, um casal de médicos que mora na área rural viverá situações novas ou semelhantes num hospital da cidade. As narrativas bipartidas desses filmes funcionam como dípticos que ao serem simultaneamente observados instauram novos sentidos a cada uma de suas partes, para em seguida anulá-los, num processo infinito de ressignificação de símbolos e imagens. É isto que torna sua revisão uma experiência sempre renovada.

Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul

Natureza e civilização, sujeito e objeto, instinto e razão. Todas as categorias que fundamentam o pensamento ocidental são suspensas por Weerasethakhul. Obra-enigma, empenhada em preservar o mistério e a sensualidade do mundo, mas ao mesmo tempo capaz de provocar intensas revelações. Quando, em Síndromes e um Século, observamos incrédulos o porão de um hospital adquirindo lentamente as dimensões metafísicas de um filme de ficção-científica jamais dirigido por Andrei Tarkovski, estamos testemunhando um milagre da arte.  Enfim o cinema avança.

*   *   *

Cinzas do Passado Redux, de Wong Kar-wai

Curiosamente, este ano a Mostra de São Paulo também incluiu na sua programação a exibição de Cinzas do Passado Redux, de Wong Kar-wai. Nunca lançado no Brasil, Cinzas do Passado (1994) foi o filme que projetou Kar-wai no Ocidente, marcando o momento de eclosão do novo cinema asiático. Visto pela primeira vez na tela grande, em cópia restaurada digitalmente, tendo restituída toda a exuberância plástica de suas imagens, Cinzas do Passado traz o melhor (a exploração das relações entre tempo e memória) e o pior (a tendência ao maneirismo) de Kar-wai. Algo que logo poderá ser conferido por um número maior de espectadores, pois um distribuidor do centro do país já adquiriu seus direitos de exibição. Elevado à condição de diretor de culto após a acolhida calorosa a Felizes Juntos (1997) e Amor à Flor da Pele (2000) pelo circuito de salas de arte, Wong Kar-wai deixou de ser encarado como um investimento de risco. Com 25 anos de atraso, os amarelos acachapantes de Cinzas do Passado finalmente irão iluminar as telas dos cinemas brasileiros.

Marcus Mello

Homenagem a Almodóvar em Veneza

O reconhecimento de Veneza à obra imensa de Almodóvar

Um dos pontos altos da 76ª edição do Festival de Veneza, encerrada no último sábado, foi a entrega do Leão de Ouro em homenagem à carreira do diretor Pedro Almodóvar.

Em uma cerimônia marcada pela emoção, a cineasta argentina Lucrecia Martel homenageou seu colega, amigo e também produtor – desde A Menina Santa (2004) – com um belíssimo texto, que reproduzimos aqui:

Almodóvar exibe seu Leão de Ouro, ao lado de Lucrecia Martel


“Estamos hoje reunidos para celebrar a Pedro Almodóvar.

Uso estas palavras, que são as mesmas da missa católica, porque o cinema

é sua religião, ele disse muitas vezes.

O cinema corrigia o que a escola humilhava nele e em muitos meninos e

meninas.

Sua paróquia era o cinema do bairro.

Nesse altar de luzes, de canções pegajosas, dançavam as divas de todos os

tempos, que o protegeram da futilidade moral, como os santos deveriam

fazer.

Em uma reportagem você disse que seguramente foi um menino muito

forte para suportar o olhar da incompreensão.

O mais forte dos meninos.

Almodóvar foi a causa e a consequência da Movida, a contracultura que

espanou a Espanha da longa letargia do franquismo.

Combateram com as melhores armas: filmes, revistas, livros, músicas,

festas. Muitas festas, não?

Digo isto com nostalgia daqueles anos 80 em que o desejo estava muito

menos organizado do que agora.

A saúde não era um bem necessário. E a cidade era a aventura na qual as

pessoas deveriam se lançar.

Era mais importante aventurar-se em certas ruas do que ter um home

theater 5.1 para ver três temporadas de 11 capítulos.


Uma década com muitíssimo menos medo do que agora.

Em 45 anos, dirigiu e escreveu mais de 30 filmes e curtas.

Suas invenções fazem parte da memória da humanidade.

De uma sacola de armazém no México a uma embalagem de balas em Tóquio.

Todos sabemos que ele fez cinema sem frequentar uma escola de cinema, e

festejamos essa carência.

Afinou seus ouvidos nas fofocas dos salões de beleza, com as lavadeiras

do rio, em becos de viciados insones, nas conversas dos vizinhos.

Para várias gerações de diretores latino-americanos seu cinema foi uma

reconciliação com o castelhano. Seus diálogos iluminaram a linguagem de

nossas próprias famílias.

Nos apontou o caminho requintado que as cantoras populares como

Chavela, La Lupe, Mina, abrem na trilha sonora.

Colecionou em sua infância cromos ou figurinhas de divas do cinema,

impressos em cores estridentes que, segundo ele, inspiraram sua

extravagante paleta de cores.

Mas é impossível ver a obra de Pedro Almodóvar sem se reconciliar com

os recantos de nossas casas onde naufraga a moda.

Os fundos horrorosos que povoam nossas fotos familiares.

Nossas festas de quinze anos, e seus penteados.

Almodóvar inundou nossa memória com invenções que não necessitam de

grandes orçamentos, mas sim de honestidade provinciana.

Esses livings com papéis de parede enlouquecidos, os enfermeiros amantes,

os tapetes com estampas de animais, os penteados com laquê, as mulheres

assimétricas, os brincos em forma de cafeteira, nos tornaram mais livres.

Nos libertaram do bom gosto, da boa educação, da moral mesquinha

daqueles que se dizem normais.

Nos libertaram da clareza dos laços familiares.

Nos reconciliaram com a estupidez, com os refrões incompreensíveis, com

os mal-entendidos.

Muito antes de as mulheres, os homossexuais, as trans, nos cansarmos

em massa do lugar miserável que tínhamos na história, Pedro já nos tornara

heroínas.

Já havia reivindicado o direito de nos inventarmos a nós mesmas.

Já havia colocado as próteses de mama, os vibradores, ao lado de uma

concha ou de uma panela de pressão, no mesmo nível de qualquer coisa

útil.

Agora ele está se ocupando dos homens, o que é fundamental.

Obrigada, Pedro!

Não há dever na ética de Almodóvar, há obrigação de criar-se.

Obrigação de inventar-se.

Ele quebrou as convenções dos gêneros do cinema, misturou-os,

elevou o melodrama acima do drama.

Abraçou o ridículo para criar uma arma sem precedentes contra o abuso.

Se aceitamos que o cinema expande o mundo como o conhecemos, o

mundo cresceu muito desde que Pedro lançou seus curtas em meados dos

anos 70.

Seus filmes inauguraram territórios onde se pode viver melhor.

Mas agora, Pedro, que a ultra direita se levanta no mundo como se nada

houvesse passado, agora, mais do que nunca, te necessitamos.

Porque seguimos molhando nossos biquínis em um mar de mortos.

Obrigada, Pedro.”

Lucrecia Martel

O dia em que João Carlos Castanha brilhou em Berlim

João Carlos Castanha em cena do filme Castanha, de Davi Pretto

Em fevereiro de 2014, o cinema gaúcho viveu um momento histórico, com a exibição de Castanha no Festival de Berlim.

Dirigido por Davi Pretto, o filme protagonizado pelo ator João Carlos Castanha foi o primeiro longa-metragem feito no Rio Grande do Sul a ser selecionado para o prestigiado festival alemão, feito que depois seria repetido outras três vezes: em 2015, com Beira-Mar, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon; em 2017, com Rifle, também de Davi Pretto; e em 2018, com Tinta Bruta, novamente da dupla Matzembacher/Reolon.

Para comemorar a recuperação de João Carlos Castanha – o ator deu um susto em seus amigos e fãs, permanecendo alguns dias na CTI em virtude de um grave problema respiratório -, resgato aqui o texto da cobertura da sessão de estreia de Castanha em Berlim, que fiz na ocasião para o jornal Zero Hora.

Foi muito emocionante poder acompanhar de perto a calorosa recepção do filme pela plateia alemã, bem como testemunhar a felicidade de seu protagonista ao ver seu talento reconhecido numa das principais vitrines do cinema mundial.


LONGA-METRAGEM GAÚCHO CASTANHA

EMOCIONA PLATEIA NO FESTIVAL DE BERLIM

por Marcus Mello

Passava de meia-noite quando os espectadores que lotaram o CinemaxX 4 para assistir à primeira exibição do longa gaúcho Castanha no Festival de Berlim saíram da sala para encarar o frio do inverno alemão. Era o final de uma noite marcante para o público e, ao mesmo tempo, o promissor pontapé inicial na carreira do cineasta gaúcho Davi Pretto, 25 anos, que faz sua estreia em longa-metragem pela porta da frente.

Selecionado para a prestigiadíssima seção Fórum, que costuma privilegiar trabalhos de perfil mais autoral, assinados por diretores comprometidos com a pesquisa de linguagem (e que este ano conta com os novos filmes do coreano Bong Joon-ho, do americano Ken Jacobs e do romeno Corneliu Porumboiu), Castanha assinala desde já um momento histórico para a produção cinematográfica do Rio Grande do Sul – não apenas por ser o primeiro longa gaúcho a participar deste que é um dos três maiores festivais de cinema do mundo, ao lado de Cannes e Veneza, mas, sobretudo, por suas qualidades estéticas.

Com a segurança de um veterano, Davi Pretto cria um filme inclassificável, híbrido de documentário e ficção, em torno de seu protagonista, o ator João Carlos Castanha. Figura com larga trajetória no teatro local e conhecido animador de shows no underground gay porto-alegrense, Castanha interpreta a si próprio, em sequências que recriam o seu muitas vezes duro cotidiano com impressionante naturalidade.

A saúde frágil, a relação com a mãe, as dificuldades de trabalhar com arte em Porto Alegre, as conversas com amigos como os atores Lauro Ramalho e Zé Adão Barbosa, o drama de um sobrinho viciado em crack, tudo nos é apresentado pela encenação precisa do diretor, como se fôssemos indiscretos observadores de um show da vida real, em um procedimento semelhante ao realizado por Andrea Tonacci na obra-prima Serras da Desordem (2006).

A equipe de Castanha em Berlim: na primeira fila, da esquerda para a direita, o ator João Carlos Castanha, o diretor Davi Pretto, a produtora Paola Wink e o desenhista de som Tiago Bello; na segunda fileira, a produtora musical Rita Zart, o fotógrafo Glauco Firpo e o montador Bruno Carboni

A primeira sessão de Castanha em Berlim contou com a presença de vários membros da equipe do filme. Além de Davi Pretto e de Castanha (que, tomados pela emoção, choraram durante o debate), subiram ao palco a produtora Paola Wink, o desenhista de som Tiago Bello, o montador Bruno Carboni, o fotógrafo Glauco Firpo, o co-produtor e distribuidor Sandro Fiorin e a produtora musical Rita Zart.

O ator João Carlos Castanha, ao lado do diretor Davi Pretto, em debate após uma das sessões de Castanha no Festival de Berlim

Na plateia lotada, muitos gaúchos (como as produtoras Aletéia Selonk e Camila Gonzatto), o presidente da Ancine, Manoel Rangel, além de uma multidão de cinéfilos berlinenses, que já esgotou os ingressos de todas as quatro sessões programadas para o filme durante o festival, ao longo desta semana.

O evento prossegue até o próximo domingo.

O ator João Carlos Castanha foi capa da revista Teorema em janeiro de 2015

Os favoritos de Almodóvar

Em 2006, o espanhol Pedro Almodóvar foi objeto de uma grande homenagem na Cinemateca Francesa, em Paris. Além de uma retrospectiva integral de seus filmes, o diretor também foi tema de uma exposição e preparou uma Carte Blanche, selecionando 29 de seus filmes favoritos para serem exibidos no templo supremo da cinefilia mundial.

Esta “carta branca” incluiu diversos títulos citados ao longo da filmografia de Almodóvar, que, à época, estava lançando Volver, o 16º longa-metragem de sua carreira.

Abaixo a lista dos favoritos de Almodóvar naquele momento, seguida por pequenos comentários do diretor sobre algumas dessas obras que integram o seu panteão cinéfilo (extraídos do programa da Cinemateca Francesa):

Então é isso. A próxima vez que alguém pedir dica de série na Netflix, respire fundo três vezes e passe adiante a listinha de Almodóvar. Esse aí entende mesmo do riscado.

“Meus filmes são repletos de filmes. Há sempre uma televisão que os exibe ou um cinema onde vão meus personagens. Todos os filmes que aparecem nos meus filmes são meticulosamente escolhidos, eles fazem parte do roteiro, eles desempenham um papel ativo. Não são homenagens a seus realizadores, mas sim roubos, eu me aproprio de seus filmes em benefício da história que eu conto.

Quando eu vou ao cinema e o filme me interessa, suas imagens se tornam parte integrante da minha vida, da minha experiência, mesmo que eu seja apenas um mero espectador. Esta Carta Branca apresenta todos os filmes que aparecem nos meus filmes e explica as razões pelas quais eu os escolhi. Há também alguns filmes que têm alguma relação com a minha filmografia ou que me serviram de referência enquanto eu escrevia ou filmava. E enfim eu escolhi alguns outros simplesmente porque adoraria revê-los. Eu os deixo então saborear.”

Pedro Almodóvar

Os Filmes:

Pacto de Sangue, de Billy Wilder (1944)

Aurora, de F. W. Murnau (1927)

Meia-Noite, de Mitchell Leisen (1939)

A Besta Humana, de Jean Renoir (1938)

Céline e Julie Vão de Barco, de Jacques Rivette (1974)

Desejo Humano, de Fritz Lang (1954)

Duelo ao Sol, de King Vidor (1946)

Essa Mulher, de Mario Camus (1969)

A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz (1950)

As Mulheres, de George Cukor (1939)

O Homem Ferido, de Patrice Chérau (1983)

Vampiros de Almas, de Don Siegel (1956)

Johnny Guitar, de Nicholas Ray (1954)

Horas de Desespero, de William Wyler (1955)

Imitação da Vida, de Douglas Sirk (1959)

Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger (1947)

Noite de Estreia, de John Cassavetes (1977)

Os Amores de Pandora, de Albert Lewin (1951)

Amar Foi Minha Ruína, de John M. Stahl (1945)

Pink Flamingos, de John Waters (1972)

Quem é Polly Maggoo?, de William Klein (1965)

Ricas e Famosas, de George Cukor (1981)

Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti (1960)

Cúmplice das Sombras, de Joseph Losey (1951)

Sonata de Outono, de Ingmar Bergman (1978)

Ensaio de um Crime, de Luis Buñuel (1955)

No Silêncio da Noite, de Nicholas Ray (1950)

A Tortura do Medo, de Michael Powell (1960)

Wanda, de Barbara Loden (1970)


Alguns comentários de Almodóvar sobre seus favoritos:


As Mulheres, de George Cukor
 
“Cukor foi um gênio no tratamento das personagens femininas.”


Essa Mulher, de Mario Camus
 
“Melodrama hiperbólico, pontuado por canções, antologia do kitsch espanhol, a serviço de Sara Montiel, a maior atriz do nosso cinema entre os anos 50 e os anos 70.”
.


Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger
 
“Powell, sozinho ou com Pressburger, é um dos meus mestres. Em todos os meus filmes, eu peço ao diretor de fotografia que tome como referência a paleta de cores da fotografia de Jack Cardiff.”


Meia-Noite, de Mitchell Leisen
 
“Perfeita ilustração da screwball comedy, ou comédia maluca. O melhor antídoto contra o tédio.”


Johnny Guitar, de Nicholas Ray
 
“Pouco importa o gênero que ele aborde, Nicholas Ray é sempre original. Neste western exemplar, duas das pistolas são empunhadas por mulheres loucas de amor.”
 


Amar Foi Minha Ruína, de John M. Stahl
 
“O filme mais brutal sobre a paranóia do ciúme. É também um filme que alia dois gêneros que eu adoro e parecem tão distantes e diferentes, o melodrama e o thriller.”


A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz
 
“O título do filme Tudo Sobre Minha Mãe vem do título original de A Malvada, All About Eve. Os dois filmes falam de mulheres e de atrizes. De mulheres que se confessam e mentem no camarim de um teatro, transformado em um sancta sanctorum do universo feminino.”


Cúmplice das Sombras, de Joseph Losey
 
Cúmplice das Sombras é um filme atípico na carreira de Joseph Losey. É um filme da série negra que trata de um culpado diante de si mesmo, face a sua consciência. Uma perspectiva sobre a culpa que eu jamais vi nesse gênero cinematográfico.”
 


O Homem Ferido, de Patrice Chéreau
 
“Novamente, ‘o desejo’ enquanto abalo interior que domina inteiramente os indivíduos. O filme de Chéreau merece ser visto antes de mais nada para admirar o olhar faminto, curioso e aflito de Jean-Hugues Anglade, assim como o selvagem objeto de seu desejo, o igualmente maravilhoso Vittorio Mezzogiorno. A Lei do Desejo e O Homem Ferido ilustram de maneira notável os personagens condenados pela paixão, antes da época da AIDS.”


Quem é Polly Maggoo?, de William Klein
 
… Polly Maggoo é a quintessência do movimento pop, com uma tomada de consciência.”


Céline e Julie Vão de Barco, de Jacques Rivette

“Um filme que se banha em uma atmosfera feminina, uma espécie de história em quadrinhos em que o acaso é a lógica da narrativa.”


Vampiros de Almas, de Don Siegel

Vampiros de Almas representa para mim uma metáfora evidente da heroína. Eu testemunhei muitos drogados transformados em corpos sem alma, os olhos vazios, o rosto sem expressão, mortos-vivos como os bodysnatchers (ladrões de corpos)”.
 


Sonata de Outono, de Ingmar Bergman
 
“Os eternos problemas mãe-filha, mesmo em Bergman, são quase sempre os problemas pai-filho. No cinema do mestre sueco, as piores crueldades se manifestam sempre no seio da família.”
 

Tuio Becker apresenta Almodóvar

No texto sobre Dor e Glória que postei aqui faço referência a um artigo do crítico gaúcho Tuio Becker (1943-2008) publicado no jornal Universitário em novembro de 1987. Até prova em contrário, “Apresentando Almodóvar” foi o primeiro texto produzido no Rio Grande do Sul sobre o diretor espanhol. Atendendo a pedidos, reproduzo o pioneiro artigo de Tuio, responsável por apresentar Pedrito aos cinéfilos gaúchos.

O resto é história.

Apresentando Almodóvar

Pedro Almodóvar. Para o público brasileiro o nome nada significa. Na Espanha, entretanto, Almodóvar tem o mesmo significado para a geração pós-moderna que, por exemplo, o nome de Carlos Saura, para aquela da resistência cultural ao franquismo. O primeiro contato do público brasileiro com o cinema praticado por Pedro Almodóvar deu-se no FestRio do ano passado, através de Matador, quinto filme do cineasta, também incluído na Mostra de Cinema Espanhol, promovida pelo Clube de Cinema de Porto Alegre no Ponto de Cinema/SESC. Almodóvar começou sua carreira, em 1980, com Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón.

Página do jornal Universitário com o artigo de Tuio Becker, depositada no acervo da Cinemateca Capitólio

Atração constante das sessões da meia-noite dos cinemas de “arte e ensaio” de Madri e Barcelona, onde seus filmes Laberinto de Pasiones (1982) e Entre Tinieblas (1983) se perpetuam por meses em cartaz projetados para um público tão devotado quanto divertido, Almodóvar passou a ser considerado pela crítica mais séria da Espanha somente a partir de seu quarto filme, Qué he Hecho Yo para Merecer Esto? (1984), que no inverno de 1985 mereceria um lançamento de destaque nos circuitos de “arte e ensaio”, que desde então vêm programando seus filmes anteriores com religiosa insistência.

Julieta Serrano como a mãe louca de Matador

Elemento egresso da “movida madrileña”, Almodóvar trabalhou com grupos de música (Alaska e Dinarama) e, entre outras coisas, reivindica o direito de autodestruir-se pelas drogas e assumir a sua sexualidade, “com que e como possa” (entrevista a Cambio 16, março/1985). Não é para menos que chegou ao FestRio precedido pela justificada fama de “o Fassbinder da Espanha”. Bem longe da sisudez dos cineastas espanhóis mais conhecidos, Almodóvar propõe um cinema irreverente, sem abdicar de uma reflexão sobre a condição humana e a ambiguidade do relacionamento social e sentimental das vidas modernas.

Como Fassbinder, o cineasta espanhol tem trabalhado com um pequeno grupo de amigos em que se destacam as atrizes Carmen Maura e Chus Lampreave, e o ator Antonio Banderas. Os três, mais Eusebio Poncela, estão reunidos no mais recente filme de Almodóvar, La Ley del Deseo (1987) – (na verdade, Chus Lampreave não está no elenco de A Lei do Desejo; Tuio provavelmente deve tê-la confundido aqui com Rossy de Palma, outra colaboradora habitual de Almodóvar). Na Espanha, um dos filmes de Fassbinder inéditos no Brasil, Fox (1975), chamou-se La Ley del Más Fuerte, o que lembra sua afinidade com Almodóvar também através do tema, o homossexualismo. Poncela faz o papel de um cineasta homossexual que se envolve com Banderas, um taxi-boy tão ingênuo quanto perigoso.

Cartaz original do primeiro longa de Almodóvar, Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão

Mas as semelhanças do cinema de Almodóvar com o de Fassbinder terminam por aí. O racionalismo germânico de Fassbinder cede lugar a um delirante delírio barroco de imagens e situações que fazem de La Ley del Deseo (e dos demais filmes de Almodóvar) algo cujo impacto só se pode avaliar assistindo. As histórias são quebradiças, fugidias, cheias de meios tons e lances agressivos que podem chegar ao que acontece a uma prostituta drogada que se oculta num convento de freiras que mantém um leopardo (sic; na verdade é um tigre) como animal de estimação (Entre Tinieblas) ou às aventuras de uma dona de casa envolvida com o marido, os filhos menores, a sogra e um grupo de nazistas que possuem os diários secretos de Hitler (Qué he Hecho Yo para Merecer Esto?).

Rossy de Palma em A Lei do Desejo

Com seus dois últimos filmes, Matador e La Ley del Deseo, Almodóvar saiu do circuito das produções independentes para merecer os favores das subvenções do Ministério da Cultura com o patrocínio da Rádio e Televisão Espanhola. Especialmente em Matador nota-se uma certa contenção dos delírios de Almodóvar, para narrar a história de dois maníacos fascinados pela morte: uma advogada (Assumpta Serna) e um toureiro (Nacho Martínez). Elementos cômicos pontuam a narrativa, mas o verdadeiro espírito de Almodóvar se reencontra em La Ley del Deseo, onde Carmen Maura (descobre-se lá pela metade do filme) faz um rapaz que muda de sexo para não prejudicar a imagem de seu pai, com quem vivia maritalmente.

Almodóvar em Labirinto de Paixões

Pode? Pois é, nos filmes de Almodóvar tem dessas coisas. O próprio cineasta, vez por outra, aparece em cena, em personagens sublinhados pelo deboche, geralmente homens travestidos de mulher. Orquestrando toda essa parafernália de tendências e intenções, Almodóvar consegue o impossível: fazer filmes que emocionem e que não sejam vistos somente com os olhos curiosos que sua figura, ou os temas abordados, provoquem. Pena que a cinematografia espanhola, como tantas outras, esteja tão distante do mercado brasileiro e que a obra de Almodóvar permaneça (quase) desconhecida.

Tuio Becker

Universitário, Novembro de 1987.

Homem à beira de um ataque de nervos

Texto originalmente publicado na edição de número 31 da revista Teorema, lançada em agosto de 2019.

Salvador Mallo (Antonio Banderas) na piscina: mergulho existencial

Em 1995, Pedro Almodóvar concedeu uma entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, na qual evocava um episódio marcante da sua infância:

Como na nossa rua ninguém sabia ler nem escrever, minha mãe, que é muito esperta, montou uma espécie de empresa: ela e eu – que era muito adiantado para minha idade – escrevíamos cartas que os vizinhos ditavam e líamos as que recebiam. Depois minha mãe montou um negócio ainda mais sofisticado. Como eu era tão inteligente, já sabia tantas coisas, enquanto os outros não sabiam nada, ela fez de mim um professor primário. Por volta das nove horas da noite, depois do trabalho nos campos, as pessoas – que eram mais velhas que eu, tinham cerca de 15 a 20 anos – vinham à nossa casa, vestidas como se fossem ao médico, e eu as ensinava a ler, escrever e contar. O incrível é que minha mãe tivesse a ideia de fazer de mim um professor aos oito anos. [Risos.] Às vezes algumas das minhas atrizes vão à televisão e dizem: “Pedro é muito exigente, pede muito de nós”. Outro dia, ao ouvir isso, minha mãe comentou: “Elas dizem que ele é exigente, mas já era assim quando pequeno.” [Risos] Quando eu dava aula, as pessoas se queixavam: “Como Pedro é severo!” É muito divertido, eu devia fazer um filme sobre isso.

O resgate desta entrevista, cujo trecho está reproduzido no livro Conversas com Almodóvar, de Frédéric Strauss (Editora Zahar, 2008), torna-se oportuno agora, em 2019, quando chega aos cinemas Dor e Glória (Dolor y Gloria), vigésimo primeiro longa-metragem da festejada carreira do diretor espanhol. Sim, quase um quarto de século depois, e prestes a completar 70 anos de idade, Almodóvar finalmente realizou o filme que havia anunciado lá em meados da década de 90. Mas, ao contrário do que seu autor previa, “divertido” está longe de ser um termo adequado para descrevê-lo. Já maduro, carregando nos ombros um pesado fardo de sucessos, fracassos e perdas – incluindo a morte da mãe, Francisca Caballero, figura de notória importância na constituição de sua personalidade –, Almodóvar entrega com Dor e Glória uma obra grave e melancólica, certamente a mais introspectiva de sua extensa filmografia, na qual revê sua história íntima e artística, promovendo um necessário acerto de contas com o passado, mas também encarando a perspectiva da própria finitude.  

Dor e Glória tem como personagem central Salvador Mallo, um diretor de cinema em crise pessoal e profissional, que vive recluso em seu apartamento em Madrid. Acometido por sofrimentos físicos (enxaquecas, dores nas costas, engasgos) e existenciais, incapaz de superar a morte da mãe, tendo que lidar com as cicatrizes deixadas por amores fracassados e amizades desfeitas, Salvador é um homem atormentado, preso a um estado que beira a letargia, no limite de uma crise de nervos. Para dar vida a esse alter ego, Almodóvar escalou Antonio Banderas, parceiro de longa data que, embora tenha protagonizado uma série de superproduções em Hollywood a partir de meados dos anos 90, até hoje tem sua imagem associada ao diretor que o revelou. Além de Banderas, Almodóvar convocou outros nomes marcantes em sua trajetória, como Cecilia Roth, Penélope Cruz e Julieta Serrano – as duas últimas interpretando a mãe do diretor, na juventude e na maturidade. A fim de realizar essa revisão cinematográfica de seu passado, o diretor recorreu até mesmo a uma quase sósia de Carmen Maura, colaboradora constante em todos os filmes da fase inicial de sua carreira, com a qual romperia após um desentendimento à época da indicação de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Niervos, 1988) ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Nora Navas, que interpreta a assistente de Salvador Mallo, Mercedes, parece ser filha de Maura, tamanha é a semelhança entre as duas. Apesar de terem voltado a trabalhar juntos em Volver (2006), a relação de Almodóvar com sua atriz-fetiche nunca mais foi a mesma. Hoje com 73 anos, Maura teria sido uma das inspirações para o personagem de Alberto Crespo (Asier Etxeandia) – protagonista do filme fictício Sabor –, junto com Eusebio Poncela, ator de Matador (1986) e A Lei do Desejo (La Ley del Deseo, 1987), com quem Almodóvar também rompera. O que Maura pensou de ter uma sósia sua escalada para ser “assistente” da versão ficcional do diretor que a consagrou na década de 80 é algo que todavia permanece uma incógnita.

Mergulho no passado

O plano de abertura de Dor e Glória mostra Salvador Mallo de olhos fechados, no fundo de uma piscina. A imagem daquele corpo ainda belo, exibindo uma longa cicatriz cirúrgica nas costas e submerso na imensidão azul, já fornece alguns indícios sobre a jornada a ser percorrida pelo personagem em direção ao passado. O mergulho na água, como sabemos, simboliza um retorno às origens, guardando uma relação íntima com o útero materno, fonte de todas as coisas, um reservatório de energia capaz de provocar a regenerescência e a reintegração (ver Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant). A fusão da água da piscina para a água do rio, onde agora vemos o menino Salvador (Asier Flores) observar a mãe (Penélope Cruz) lavando roupa em companhia de outras mulheres, revela o quanto o reencontro com as memórias de infância se constitui a base de sustentação do labirinto autoficcional projetado por Almodóvar.

Em seu retorno à superfície, Salvador nos apresenta, em voice over, um resumo dos problemas clínicos e emocionais que o conduziram ao estágio de semi paralisia no qual se encontra, incapaz de filmar ou mesmo de estabelecer qualquer tipo de contato social. Entretanto, um encontro casual com a atriz argentina Zulema – uma participação deliciosa de Cecilia Roth, uma das mais icônicas “chicas Almodóvar” – leva o personagem a encarar outro capítulo decisivo de sua existência, quando, já adulto, na década de 80, ganhou notoriedade como diretor de cinema ao assinar obras originais e transgressoras, tornando-se uma personalidade central da “movida madrileña”. Através de Zulema, Salvador descobre o endereço de Alberto Crespo, protagonista de Sabor, um êxito da fase inicial de sua carreira, com quem não fala há 32 anos. Insatisfeito com a interpretação de Alberto em Sabor, provocada por sua indisciplina e pela dependência em heroína do ator, ambos cortaram relações. Mas o convite para uma sessão comentada de uma cópia restaurada de Sabor na Filmoteca Espanhola faz com que Salvador volte a se aproximar de Alberto. As antigas desavenças entre os dois serão resolvidas em uma série de encontros regados a heroína, e o consumo da droga logo passa a fazer parte da rotina de Salvador.

Alberto Crespo (Asier Etxeandia) no palco: teatro e cinema ao som de Grace Jones

Em Dor e Glória as doses de heroína funcionam como as xícaras de chá com madeleines para o narrador de Proust, pois é o efeito entorpecente da droga que leva Salvador Mallo a viajar cada vez com maior frequência em busca do tempo perdido de sua infância, recuperando episódios fundamentais para a sua formação: o ingresso no coral da escola, o amor pelos livros e pelo cinema, o relacionamento com a mãe, as lições de escrita para o pedreiro Eduardo (César Vicente) e a descoberta do desejo. Ao mesmo tempo, ao reviver os acontecimentos de uma infância passada em um miserável vilarejo no interior da Espanha, Salvador começa a enfrentar alguns dos fantasmas de sua vida adulta, que incluem as feridas provocadas por seu conturbado envolvimento amoroso com um dependente químico (Leonardo Sbaraglia) e as questões não resolvidas com a mãe, incapaz de aceitar a homossexualidade do filho.

Devido ao acúmulo de elementos autobiográficos, muitos críticos têm se referido a Dor e Glória como o Oito e Meio (1963) de Almodóvar, comparando-o à obra-prima do italiano Federico Fellini sobre um diretor em crise criativa. Entretanto, um olhar mais atento vai identificar uma proximidade maior deste novo Almodóvar com o Fellini de Amarcord (1973), pela forma delicada como os diretores reencenam as experiências de sua própria infância, que surgem transfiguradas pela imaginação. Uma referência também evidente é o All That Jazz (1979) de Bob Fosse, afinal, menos do que um bloqueio de criatividade, o que de fato atormenta Salvador Mallo é a crise da maturidade, com a proximidade da velhice, e a consequente necessidade de lidar com a morte e com a perda da libido. É a ausência do desejo que conduz o personagem à imobilidade, à reclusão e à paralisia criativa. A cura virá, curiosamente, por meio do uso da droga, que vai possibilitar o mergulho na infância, trazendo à tona memórias recalcadas, e promover a reaproximação dos amigos – incluindo o reencontro com Federico, o grande amor da juventude, graças à intervenção de Alberto. Ao receber de Mercedes um convite para a abertura de uma exposição de arte, Salvador se depara com uma imagem que vai obrigá-lo a reviver um acontecimento fundamental, que talvez estivesse escondido em seu inconsciente. E é o resgate da experiência de seu primeiro desejo que fará com que este homem ferido volte enfim a viver e a criar novamente, recuperando a capacidade perdida de desejar.

O pequeno Salvador (Asier Flores): infância revisitada

 Se Almodóvar realmente atravessou um período de bloqueio criativo, Dor e Glória vem atestar que o mesmo foi superado. O filme se desenrola de maneira hipnótica, com uma sucessão de cenas de construção impecável, e traz pelo menos duas sequências dignas de antologia: a encenação teatral do monólogo O Vício por Alberto Crespo e o despertar sexual do menino Salvador, que culmina com seu desfalecimento ao se deparar com a nudez de Eduardo. A primeira delas tem início no palco de um teatro vazio, durante um ensaio. Alberto dança ao som de La Vie en Rose, na versão de Grace Jones, e em seguida surge já diante do público. O texto recitado, de tons autobiográficos, narra o conturbado relacionamento de Salvador Mallo com um jovem viciado em heroína, bem como o despertar de sua paixão pelo cinema, ainda na infância. Em uma tela ao fundo do palco são projetados trechos dos filmes Clamor do Sexo (Splendor in the Grass, Elia Kazan, 1961) e Torrente de Paixão (Niagara, Henry Hathaway, 1953), dois títulos que ocupam um lugar de destaque no panteão cinéfilo de Almodóvar. O rigor dos enquadramentos, o uso das cores, a hábil combinação entre as linguagens do teatro e do cinema, a escolha das músicas (com direito à gravação de Chavela Vargas para A Noite do meu Bem, de Dolores Duran) e a intensidade da performance de Asier Etxeandia provocam no espectador um estado de euforia estética raras vezes alcançado. O mesmo pode ser dito sobre a sequência-chave do filme, quando Salvador é fulminado pela experiência de sentir seu primeiro desejo. Em tempos de brutal retrocesso conservador, Almodóvar comete a ousadia de representar a atração sexual de uma criança em relação a um adulto, e o faz de forma frontal, sem qualquer subterfúgio. No caso, o desejo de um menino dirigido a outro homem, o pedreiro Eduardo, encenado por meio de uma precisa coreografia de corpos e olhares, com alta voltagem erótica e extrema delicadeza. Em termos de abordagem das questões envolvendo infância e sexualidade, nunca se viu nada igual no cinema, e isso devemos, uma vez mais, ao gênio de Almodóvar.

O pedreiro Eduardo (César Vicente): o “primeiro desejo” de Salvador

Quanto ao aspecto formal, o espanhol mantém o hábito de introduzir na narrativa algum procedimento inesperado. Desta vez, são as animações quase lisérgicas assinadas por Juan Gatti, que ilustram os diferentes problemas de saúde de Salvador, dando materialidade gráfica às dores do corpo e da alma que afligem o personagem através de um caleidoscópio de formas e cores exuberantes. Ou ainda a surpresa trazida pelo belíssimo plano final, quando se revela a peça pregada por Almodóvar em seus espectadores: todas as sequências de flashback relacionadas à infância de Salvador na verdade não passavam de um filme dentro do filme.

Já o domínio do diálogo, outro aspecto marcante no cinema de Almodóvar, se manifesta sobretudo no reencontro com o ex-amante e a série de conversas com a mãe enferma. São dois acertos de contas com um passado doloroso, um deles representado pelo homem de sua vida, e o outro pela mulher que lhe trouxe ao mundo e definiu sua personalidade, mas nunca conseguiu aceitar o seu estilo de vida. Cabe ressaltar que uma das maiores emoções proporcionadas por este Dor e Glória é a possibilidade de assistir ao reencontro de Almodóvar com a atriz Julieta Serrano, com quem o diretor não trabalhava há 30 anos. Ao lado de Antonio Banderas, Carmen Maura, Rossy de Palma e Chus Lampreave, Julieta Serrano foi uma presença constante na primeira – e mais transgressora – fase da carreira de Almodóvar, com participações inesquecíveis em sucessos como Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, no qual interpretava a esposa traída que cruzava as ruas de Madrid na carona de uma moto, com sua peruca ao vento e um revólver na bolsa, a fim de acertar contas com a amante do marido. Ver essa atriz extraordinária, que em duas outras ocasiões encarnou mães enlouquecidas de um então jovem Banderas (em Matador e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), aos 86 anos de idade, contracenando novamente com um Banderas já maduro, desta vez no papel de mãe de Salvador Mallo, alter ego do diretor que a apresentou ao mundo, é algo muito comovente, por possibilitar um reencontro com nossa própria juventude perdida.[1]

Salvador e a mãe (Julieta Serrano): acerto de contas

Como diz Denilson Lopes em seu artigo sobre o filme de Leonardo Mouramateus publicado nesta edição da Teorema, em Dor e Glória “há a arte, há o amor, há a amizade”. E há, acima de tudo, o cinema que salva, nesta reflexão madura sobre desejo, superação e o poder da criação contra a inevitabilidade do fim, realizada com uma combinação de humanidade e virtuosismo tão perfeita que só um artista da estatura de Pedro Almodóvar seria capaz de nos oferecer.

Marcus Mello


[1] Meu primeiro encontro com o cinema de Almodóvar se deu através da exibição de Matador durante uma mostra de cinema espanhol, promovida pelo Clube de Cinema de Porto Alegre no antigo Ponto de Cinema/SESC, em 1987. Embora Matador fosse o quinto longa do diretor (contagem que não inclui Folle… Folle… Fólleme Tim!, de 1978, filmado em Super 8), Almodóvar ainda era um completo desconhecido para os cinéfilos brasileiros. Até hoje guardo intacto na memória o impacto dessa descoberta cinematográfica da juventude. Também em 1987 o crítico Tuio Becker publicaria no jornal Universitário, em sua edição de novembro, o artigo “Apresentando Almodóvar”, que, salvo engano, foi o primeiro texto produzido no Rio Grande do Sul sobre o diretor, descrito então como o “Fassbinder da Espanha” (este texto está disponível no livro Sublime Obsessão, coletânea de artigos esparsos de Tuio Becker lançada em 2003 pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e a Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, dentro da coleção Escritos de Cinema).

A partir daí, Almodóvar se transformaria no “meu” cineasta, fui amadurecendo com ele, assisti à estreia de cada um de seus filmes, filmes que vi e revi muitas vezes, e que de certa forma me salvaram (assim como o cinema salvou o menino Salvador). Para um amante do cinema, não há privilégio maior do que poder acompanhar passo a passo a construção da filmografia de seu diretor de cabeceira.

Blog numa hora dessas?

Criar um blog em 2019?

Sim, no momento em que ninguém mais lê blogs, resolvo nadar contra a corrente e criar um.

De certa forma, este gesto, vindo de quem vem, não deveria surpreender. Afinal, lá no começo dos anos 2000, quando todas as pessoas passaram a trocar o suporte de papel pelo admirável mundo novo dos meios digitais, fui me lançar, junto a um grupo de amigos, à insana aventura de criar uma revista impressa, Teorema (projeto que, aliás, resiste até hoje).

A proposta do Crítico à Beira de um Ataque de Nervos é reunir artigos esparsos (publicados ao longo dos anos em diferentes veículos), produzir novos textos, divulgar artigos de outros autores que merecem ser conhecidos, compartilhar imagens que me tocam, sugerir leituras. Provavelmente ninguém vá passar por aqui e a empreitada se revele inútil, com vocação para se tornar mais um grande desperdício de tempo e de energia.

Ainda assim, se não tiver qualquer outra utilidade, talvez este blog sirva para eu não enlouquecer. Daí também o seu nome, uma singela homenagem a meu diretor de cinema favorito, o espanhol Pedro Almodóvar, mas também uma fiel tradução do atual estado de espírito de alguém que assiste impotente ao processo de destruição do Brasil, levado a cabo por um bando de canalhas da pior espécie.

Em linhas gerais, será um blog sobre filmes, sobre livros, sobre imagens (seguindo a sugestão de uma amiga que diz adorar minha “curadoria de fotos” no Facebook) e sobre o que mais der vontade.

Então vai ter textão, vai ter textinho e vai ter muita foto.

Como não poderia deixar de ser, o primeiro texto postado aqui será uma crítica ao mais recente Almodóvar, o sensacional Dor e Glória, ainda em cartaz nos cinemas brasileiros.

A partir de agora, o Crítico à Beira de um Ataque de Nervos está no ar.

Marcus Mello