
Um dos pontos altos da 76ª edição do Festival de Veneza, encerrada no último sábado, foi a entrega do Leão de Ouro em homenagem à carreira do diretor Pedro Almodóvar.
Em uma cerimônia marcada pela emoção, a cineasta argentina Lucrecia Martel homenageou seu colega, amigo e também produtor – desde A Menina Santa (2004) – com um belíssimo texto, que reproduzimos aqui:

“Estamos hoje reunidos para celebrar a Pedro Almodóvar.
Uso estas palavras, que são as mesmas da missa católica, porque o cinema
é sua religião, ele disse muitas vezes.
O cinema corrigia o que a escola humilhava nele e em muitos meninos e
meninas.
Sua paróquia era o cinema do bairro.
Nesse altar de luzes, de canções pegajosas, dançavam as divas de todos os
tempos, que o protegeram da futilidade moral, como os santos deveriam
fazer.
Em uma reportagem você disse que seguramente foi um menino muito
forte para suportar o olhar da incompreensão.
O mais forte dos meninos.
Almodóvar foi a causa e a consequência da Movida, a contracultura que
espanou a Espanha da longa letargia do franquismo.
Combateram com as melhores armas: filmes, revistas, livros, músicas,
festas. Muitas festas, não?
Digo isto com nostalgia daqueles anos 80 em que o desejo estava muito
menos organizado do que agora.
A saúde não era um bem necessário. E a cidade era a aventura na qual as
pessoas deveriam se lançar.
Era mais importante aventurar-se em certas ruas do que ter um home
theater 5.1 para ver três temporadas de 11 capítulos.
Uma década com muitíssimo menos medo do que agora.
Em 45 anos, dirigiu e escreveu mais de 30 filmes e curtas.
Suas invenções fazem parte da memória da humanidade.
De uma sacola de armazém no México a uma embalagem de balas em Tóquio.
Todos sabemos que ele fez cinema sem frequentar uma escola de cinema, e
festejamos essa carência.
Afinou seus ouvidos nas fofocas dos salões de beleza, com as lavadeiras
do rio, em becos de viciados insones, nas conversas dos vizinhos.
Para várias gerações de diretores latino-americanos seu cinema foi uma
reconciliação com o castelhano. Seus diálogos iluminaram a linguagem de
nossas próprias famílias.
Nos apontou o caminho requintado que as cantoras populares como
Chavela, La Lupe, Mina, abrem na trilha sonora.
Colecionou em sua infância cromos ou figurinhas de divas do cinema,
impressos em cores estridentes que, segundo ele, inspiraram sua
extravagante paleta de cores.
Mas é impossível ver a obra de Pedro Almodóvar sem se reconciliar com
os recantos de nossas casas onde naufraga a moda.
Os fundos horrorosos que povoam nossas fotos familiares.
Nossas festas de quinze anos, e seus penteados.
Almodóvar inundou nossa memória com invenções que não necessitam de
grandes orçamentos, mas sim de honestidade provinciana.
Esses livings com papéis de parede enlouquecidos, os enfermeiros amantes,
os tapetes com estampas de animais, os penteados com laquê, as mulheres
assimétricas, os brincos em forma de cafeteira, nos tornaram mais livres.
Nos libertaram do bom gosto, da boa educação, da moral mesquinha
daqueles que se dizem normais.
Nos libertaram da clareza dos laços familiares.
Nos reconciliaram com a estupidez, com os refrões incompreensíveis, com
os mal-entendidos.
Muito antes de as mulheres, os homossexuais, as trans, nos cansarmos
em massa do lugar miserável que tínhamos na história, Pedro já nos tornara
heroínas.
Já havia reivindicado o direito de nos inventarmos a nós mesmas.
Já havia colocado as próteses de mama, os vibradores, ao lado de uma
concha ou de uma panela de pressão, no mesmo nível de qualquer coisa
útil.
Agora ele está se ocupando dos homens, o que é fundamental.
Obrigada, Pedro!
Não há dever na ética de Almodóvar, há obrigação de criar-se.
Obrigação de inventar-se.
Ele quebrou as convenções dos gêneros do cinema, misturou-os,
elevou o melodrama acima do drama.
Abraçou o ridículo para criar uma arma sem precedentes contra o abuso.
Se aceitamos que o cinema expande o mundo como o conhecemos, o
mundo cresceu muito desde que Pedro lançou seus curtas em meados dos
anos 70.
Seus filmes inauguraram territórios onde se pode viver melhor.
Mas agora, Pedro, que a ultra direita se levanta no mundo como se nada
houvesse passado, agora, mais do que nunca, te necessitamos.
Porque seguimos molhando nossos biquínis em um mar de mortos.
Obrigada, Pedro.”
Lucrecia Martel