Pesquisador, programador e crítico de cinema, um dos editores da revista "Teorema", fundada em agosto de 2002, uma das publicações de cinema mais longevas do Brasil. Formado em Letras, é Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e especialista em gestão cultural pela Universidade de Girona, na Espanha, em curso realizado em parceria com o Itaú Cultural de São Paulo.
Entre maio de 2013 e dezembro de 2016 foi Coordenador de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria da Cultura de Porto Alegre e diretor da Cinemateca Capitólio, inaugurada em março de 2015.
Tuio Becker na redação do jornal Zero Hora (foto de Adriana Franciosi)
Poucas pessoas
amaram tanto o cinema quanto Tuio Becker. Nascido em Santa Cruz do Sul, pequena
comunidade de colonização alemã localizada na região central do Estado, Tuio começou
a publicar seus primeiros textos em 1961, ainda em sua cidade natal. Jovem
inquieto que era, com vocação para cidadão do mundo e curiosidade intelectual
insaciável, em 1963 mudou-se para Porto Alegre, onde ingressou na Faculdade de
Arquitetura da UFRGS. Embora tenha terminado o curso, logo trocaria as pranchas
de desenho pela crítica cinematográfica e pelo jornalismo cultural, passando
pelas redações de jornais como Correio do
Povo, Folha da Manhã e Zero Hora. Sua atuação nesses veículos,
interrompida em agosto de 2001, quando decidiu se aposentar, produziu um legado
que ainda precisa ser estudado e o coloca entre os intelectuais mais brilhantes
de sua geração. Além da crítica, Tuio também dirigiu filmes, entre os quais o
longa Heimweh/Nostalgia (em parceria
com seu grande amigo Sérgio Silva), trabalhou como ator e publicou livros,
incluindo uma pioneira história do cinema gaúcho, lançada em 1986.
Tuio Becker em cena do filme Inverno (1983), de Carlos Gerbase
Assim como Tuio,
também nasci em Santa Cruz do Sul, e meu primeiro contato com o cinema se deu
através de seus textos. A exemplo dele, também nunca me adaptei à vida pacata
do interior, um ambiente pequeno demais para o tamanho das nossas paixões. Em
2003, quando os primeiros sintomas do Mal de Alzheimer – doença que o levaria a
falecer em maio de 2008 – começaram a se manifestar, tive o privilégio de
organizar o livro Sublime Obsessão,
coletânea de textos esparsos de Tuio, publicada pela Coordenação de Cinema,
Vídeo e Fotografa da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre em
parceria com a Universidade de Santa Cruz do Sul. Foi um período curto porém
intenso, no qual pude conviver mais de perto com ele, escutando suas histórias
deliciosas, me divertindo com seu afiado senso de humor e me valendo de sua
inesgotável erudição, antes que sua consciência se apagasse definitivamente.
Nunca me conformei com sua morte precoce, e hoje, mais do que nunca, lamento
que ele tenha partido tão cedo.
Meu querido
Tuio, nossa cidade natal mudou muito, e agora não temos mais tantos motivos
para falarmos mal dela. Sim, a preocupação com a vida alheia ainda predomina, a
Oktoberfest segue sendo seu maior acontecimento cultural e a turma conservadora
permanece no poder. Mas veja só, hoje a cidade tem uma universidade que se
tornou um centro de efervescência cultural, tem feira do livro, tem teatro,
voltou a ter cinemas, conta com uma nova geração de diretores fazendo filmes e,
pasme, desde o ano passado realiza seu próprio festival de cinema. E a partir
deste ano, o Festival Santa Cruz de Cinema, que começa na segunda-feira, dia
21, e se estende até o dia 25, passa a te homenagear, dando o teu nome a um de
seus novos prêmios. Mas deixa eu te falar mais sobre isso.
Fruto
de uma parceria entre a Universidade de Santa Cruz do Sul (a mesma que ajudou a
publicar teu livro lá em 2003), o Sesc e a produtora Pé de Coelho, o Festival Santa
Cruz de Cinema teve sua primeira edição no ano passado. Começou pequeno, mas
devido à repercussão positiva por parte do público, dos realizadores e da
imprensa, já em sua segunda edição o festival mostra uma ampliação de seu
alcance – em 2018, foram 538 filmes inscritos, sendo selecionados 15 para a
mostra competitiva nacional; este ano o número de inscritos aumentou para 613,
de 22 estados diferentes, com 18 filmes na competição nacional. Mas a maior
novidade é mesmo a criação do Prêmio Tuio Becker, que, nas palavras dos
organizadores, é dedicado “a artistas relevantes e representativos do cinema”
e, nesta sua primeira edição, será entregue ao ator Leandro Firmino, o
inesquecível Zé Pequeno de Cidade deDeus (2002). Imagina só essa, Tuio. O Zé
Pequeno vai te levar para casa! E depois dele, tantos outros mais.
Com ares pasolinianos em O Negrinho do Pastoreio (1973), de Antônio Augusto Fagundes, outra de suas investidas como ator
Quem te conheceu sabe bem que essa coisa de homenagem não combinava muito contigo, o mais discreto e elegante dos homens. Se ainda estivesses por aqui, é certo que iríamos pegar juntos o ônibus para Santa Cruz com um único objetivo: reencontrar a família e os amigos, ver filmes e mais filmes e depois virar a noite conversando sobre eles.
* Texto originalmente publicado no caderno Doc do jornal Zero Hora, em sua edição de 19/20 de outubro de 2019.
Helena Ignez em A Família do Barulho (1970), de Julio Bressane
Em 1959, o curta
experimental Pátio, assinado pelo
jovem realizador baiano Glauber Rocha, marcaria o início da trajetória
artística de uma atriz que inventou uma nova forma de interpretação
cinematográfica no país. Os movimentos sinuosos de Helena Ignez sobre um piso
em forma de tabuleiro de xadrez, no filme de estreia deste que hoje é
considerado nosso maior cineasta, não apenas representam a chegada do cinema
moderno no Brasil, mas também anunciam o fim da empostação teatral consagrada
pela escola de atores do TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia, então dominante
em nossos palcos e telas. Algo que logo será confirmado por sua performance em O Padre e a Moça (1966), de Joaquim
Pedro de Andrade, filme no qual, ao lado de Paulo José, ela irá estabelecer
definitivamente um outro padrão de atuação no cinema brasileiro, sintonizado
com a efervescência cultural e criativa dos anos 60.
Antes de
protagonizar o clássico O Bandido da Luz
Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla, filme que consolidou sua imagem como
musa do cinema de invenção, Helena Ignez já havia comprovado seu talento em
obras marcantes como A Grande Feira
(1961), de Roberto Pires, O Assalto ao
Trem Pagador (1961), de Roberto Farias, O
Grito da Terra (1964), de Olney São Paulo, Cara a Cara (1965), de Julio Bressane, e o já citado O Padre e a Moça. No entanto, é preciso
sublinhar que somente a impressionante galeria de personagens a que deu corpo
em colaboração com Sganzerla – Janet Jane, Ângela Carne e Osso, Sônia Silk… –
já desautoriza essa definição equivocada de Helena como “musa” de determinado
diretor ou movimento. Afinal, uma musa não pensa, uma musa não cria, uma musa
não tem autonomia, e isso é todo o contrário daquilo que Helena sempre imprimiu
em cada um de seus trabalhos. A anti-musa por excelência, Helena Ignez é um
corpo elétrico, em explosão criativa constante. Uma atriz dialética, na mais
perfeita acepção do termo, como o mestre Bertolt Brecht lhe ensinou.
Em 2005, com o
curta A Miss e o Dinossauro, no qual
revisita o período breve e intensamente criativo da produtora Belair, Helena
passa a dirigir seus próprios filmes, assumindo um protagonismo autoral que
sempre esteve presente nas suas colaborações com outros realizadores, em
especial em suas parcerias com Sganzerla e Bressane. Em 2007, assina seu
primeiro longa, o brechtiano Canção de
Baal, inventiva recriação de Baal,
texto de estreia do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, uma de suas maiores
influências intelectuais. A presença de Brecht volta a se manifestar, já no
título, em Luz nas Trevas (2010),
continuação de O Bandido da Luz Vermelha,
sobre um roteiro inédito de Sganzerla, que morreu sem conseguir realizá-lo.
Quando muitos outros pensariam em se aposentar ou pelo menos diminuir seu ritmo de trabalho, Helena se lança num período de produção intensa. Faz teatro, assina filmes originalíssimos, irreverentes e politicamente engajados – Poder dos Afetos (2013), Ralé (2016), A Moça do Calendário (2017) –, e colabora tanto com uma série de jovens curta-metragistas quanto em longas de diretores mais experientes como Ricardo Miranda (Paixão e Virtude/2014) e Cristiano Burlan (Antes do Fim/2017), este ao lado de Jean-Claude Bernardet.
Em sua 19ª edição, a Goiânia Mostra Curtas reverencia, celebra e homenageia Helena Ignez, “a mulher da luz própria”, como tão bem sintetiza o título do belo documentário assinado por sua filha Sinai Sganzerla, que resgata o percurso pessoal e criativo desta artista imensa.
* Texto produzido especialmente para o catálogo da 19ª edição da Goiânia Mostra Curtas, realizada entre 8 e 13 de outubro de 2019, que teve Helena Ignez como uma de suas homenageadas.
Um mês do Crítico
à Beira de um Ataque de Nervos hoje.
Para marcar a data, estreamos a prometida seção de
dicas de livros, com o clássico A Cidade
das Redes: Hollywood nos Anos 40, de Otto Friedrich.
Voltei a ele em função da exposição sobre a era de ouro de Hollywood que estamos preparando na Cinemateca Capitólio, com curadoria da historiadora Alice Trusz, a inaugurar em outubro.
Publicado nos Estados Unidos em 1986, o livro de Friedrich
foi lançado no Brasil em 1988, pela editora Companhia das Letras, e obviamente está
fora de catálogo, mas pode ser facilmente conseguido nos sebos virtuais (as
ofertas variam de R$ 5,85 a abusivos R$ 300,00).
Um calhamaço de quase 500 páginas que se lê com a mesma voracidade com que devoramos um romance policial dos bons, atravessando a madrugada para descobrir quem é o assassino (lembro, por exemplo, dos mistérios literários do escritor americano John Dunning protagonizados pelo detetive e negociante de livros raros Cliff Janeway).
O autor resgata os principais fatos da década que
marcou o apogeu do sistema dos grandes estúdios hollywoodiano, desvendando seus
bastidores e resgatando histórias deliciosas envolvendo alguns de seus
principais protagonistas.
Tudo é bom, mas gosto especialmente das páginas que descrevem os embates da atriz Bette Davis com o chefão da Warner, Jack Warner, a presença estrangeira de intelectuais europeus fugidos do nazismo (entre eles, Bertolt Brecht, Thomas Mann, Igor Stravinski) em Los Angeles, as tentativas quase sempre frustadas de escritores como F. Scott Fitzgerald, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Lillian Hellman ou William Faulkner trabalharem como roteiristas de cinema, e a perseguição aos intelectuais de esquerda por parte do Comitê de Atividades Antiamericanas liderado pelo infame senador Joseph McCarthy.
Vale muito mergulhar nas páginas desse livro sensacional, a ser saboreado em meia dúzia de sentadas.
Daniel Day-Lewis como o pedante Cecil Vyse em Uma Janela para o Amor (1985), de James Ivory
Hoje, ao ler mais um texto sobre Bacurau em que a reação dos moradores ao ataque que sofrem é problematizada por responder à violência de forma também violenta, lembrei de um trecho do escritor francês Michel Houellebecq em Submissão (2015), no qual ele discorre sobre essa figura tão curiosa que é o “intelectual de direita”:
“Ele tinha um jeito de intelectual de direita muito sedutor, pensei, isso lhe daria uma certa singularidade na faculdade. Podemos deixar as pessoas falarem bastante tempo, elas estão sempre interessadas no próprio discurso, mas, ainda assim, de vez em quando convém interferir, um mínimo que seja. (…) Por pouco não perguntei a Lempereur: “Você está mais para carola, fascistoide, ou é uma mistura dos dois?”, antes de me recompor. Decididamente eu tinha perdido o contato com os intelectuais de direita, já não fazia a menor ideia de como lidar com eles.”
Embora muitos desses espécimes sigam por aí, insistindo sempre no clássico corte de cabelo escovinha com topete bem armado, também não pude deixar de pensar que em matéria de intelectuais de direita o Brasil já esteve bem melhor servido em outras épocas.
Antônio das Mortes (Maurício do Valle), o matador de cangaceiros
Em 2019, comemoramos os 50 anos de lançamento de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Maior sucesso comercial da carreira de Glauber Rocha, o filme conquistou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes de 1969 e garantiu ao cinema brasileiro a sua primeira capa na prestigiosa revista Cahiers du Cinéma.
Essa dupla façanha de um mesmo filme brasileiro – premiação em Cannes e capa da Cahiers – só se repetiria este ano, com Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, vencedor do Prêmio do Júri na última edição do festival francês e capa da edição de setembro da Cahiers, que acaba de chegar às bancas. Não por acaso, o reconhecimento acontece justamente com um filme que estabelece um diálogo direto com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.
Para festejar as 50 primaveras deste monumento do cinema nacional, resgato aqui um texto que escrevi para o encarte da edição em DVD de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro pela Programadora Brasil, iniciativa do Ministério da Cultura que visava a difusão do cinema brasileiro. Um projeto sensacional, que infelizmente acabou, assim como acabou o Ministério da Cultura, assim como está acabando Brasil.
O filme de Glauber na capa da Cahiers du Cinéma
Neo-western dialético
Quarenta anos depois de sua estreia nos cinemas, O Dragão da MaldadeContra o Santo Guerreiro finalmente pode voltar a ser apreciado da forma como Glauber Rocha o concebeu. Um minucioso processo de restauração recuperou as cores da fotografia de Affonso Beato, revelando para as novas gerações a plasticidade exuberante deste neo-western violento e excessivo, uma indiscutível obra-prima do cinema brasileiro moderno.
Primeiro longa-metragem colorido de Glauber Rocha, O Dragão daMaldade Contra o Santo Guerreiro é um dos projetos cinematográficos mais ambiciosos do diretor baiano. Lançado em 1969, no auge da ditadura militar, após a publicação do AI-5, o filme procurava traduzir para o grande público as ideias do Cinema Novo, apresentadas numa trama que incorporava elementos do western americano e da literatura de cordel. Glauber resgata um dos personagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o matador de cangaceiros Antônio das Mortes (Maurício do Valle), cuja má consciência lhe faz lamentar seu passado de sangue a serviço dos poderosos. Ao testemunhar o confronto de um coronel (Joffre Soares) com a população miserável de um pequeno vilarejo no interior do Nordeste, Antônio das Mortes poderá enfim se redimir, aliando-se a um professor (Othon Bastos), a Santa Bárbara (Rosa Maria Penna) e a Negro Antão (Mário Gusmão) – que representa São Jorge – para acabar com a injustiça no sertão. O tom alegórico e a encenação antinaturalista não atenuam a radicalidade do discurso político do filme, que fazia a defesa da reforma agrária e pregava a ação revolucionária como única possibilidade de enfrentar as desigualdades sociais do Brasil.
O esforço de Glauber foi duplamente recompensado. Além de ser o maior sucesso de público de sua carreira, O Dragão daMaldade Contra o Santo Guerreiro conquistou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes, transformando-o em autor de prestígio internacional. Tamanha virulência crítica e repercussão midiática, no entanto, foram malvistas pelo governo militar, obrigando o diretor a exilar-se na Europa. Glauber só voltaria a dirigir outro longa-metragem no Brasil dez anos mais tarde, A Idade daTerra (1980), justamente seu filme-testamento, lançado um ano antes de sua morte, ocorrida em 22 de agosto de 1981.
Odete Lara, em um dos momentos mais belos do filme de Glauber Rocha
Um ponto alto de O Dragão daMaldade Contra o Santo Guerreiro é a presença de Odete Lara, interpretando a esposa adúltera do coronel. São da atriz os dois momentos mais sublimes do filme: o assassinato do amante (Hugo Carvana) a punhaladas e a cena em que ela caminha pelo sertão com um longo vestido roxo e um buquê de flores de papel nas mãos. Duas sequências dignas de antologia, que ilustram os paradoxos do cinema de Glauber Rocha, em sua permanente oscilação entre beleza e horror.
O cineasta Carlão Reichenbach (1945-2012), além dos tantos filmes que dirigiu, deixou um legado precioso para seus fãs e admiradores: as centenas de publicações do blog que manteve entre 2004 e 2012. Durante 9 anos, estimulado pela facilidade de acesso à informação possibilitada pela internet, Reichenbach compartilhou com uma legião fiel e sempre crescente de leitores o seu imenso repertório cinematográfico, musical e literário, bem como as suas novas descobertas (a curiosidade de Carlão era insaciável).
O
blog, que começou com o nome de Reduto do
Comodoro, a partir de 2008 passou a se chamar Olhos Livres, e ainda pode ser parcialmente acessado.
Em pouco tempo, o projeto do blog teria desdobramentos como a Sessão do Comodoro, realizada mensalmente no Cinesesc – a primeira e histórica edição aconteceu em julho de 2004 e exibiu os cultuados Santa Sangre, de Alejandro Jodorowsky, e Canibal Holocausto, de Ruggero Deodato –, e o prêmio Quepe do Comodoro, no qual Reichenbach destacava diferentes iniciativas no terreno da cinefilia, a fim de reconhecer “o trabalho dos melhores sites nacionais sobre cinema, arte e cultura”.
Em 29 de maio de 2012, poucos dias antes de morrer, Carlão fez a
última postagem no blog, divulgando a exibição do filme Banho de Sangue, de Mario Bava, em sua sessão no Cinesesc.
Para quem quiser acessar algumas das maravilhas compartilhadas pelo saudoso Reichenbach, o endereço http://olhoslivres.zip.net segue disponível. Infelizmente os primeiros anos do blog sumiram da rede (o endereço http://doiscorregos.blog.uol.com.br leva à página inicial do UOL).
Arrisco a dizer que os textos e as indicações compiladas por Reichenbach nesse espaço virtual equivalem a um curso de cinema ministrado pelo melhor e mais generoso dos professores. Entre as tantas preciosidades ali encontradas, merecem destaque as tradicionais e ansiosamente aguardadas listas com sugestões de filmes, que sempre evitavam o óbvio e faziam a alegria dos leitores (o essencial do cinema extremo, o essencial do filme musical americano, performances antológicas do cinema brasileiro, o essencial do filme noir, o essencial do filme de gângster, o essencial do faroeste americano, e por aí vai…).
Um
material que deve ser preservado e mereceria uma edição em livro.
Mais uma tarefa para a super Sara Silveira, amiga e fiel produtora de Carlão?
O curso sobre cinema chinês ministrado pelo crítico francês Jean-Michel Frodon na Unisinos no último mês de junho e o sucesso da mostra O Cinema do Ásia, atualmente em cartaz na Cinemateca Capitólio, me levaram a resgatar este texto, publicado na edição de número 13 da revista Teorema, em dezembro de 2008. O texto foi escrito a partir do impacto de vários filmes vistos na 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e da mostra Ásia: A Nova Onda Oriental, que organizei à época em que era programador da Sala P. F. Gastal. Essa mostra, realizada entre 28 de outubro e 9 de novembro de 2008, é uma das programações das quais mais me orgulho de ter feito, pois apresentou pela primeira vez em Porto Alegre o cinema de Apichatpong Weerasethakul, entre tantos outros títulos notáveis, incluindo duas obras-primas do diretor chinês Hou Hsiao-hsien nunca lançadas no Brasil, Millennium Mambo e Three Times.
Eventos recentes, como o ciclo Ásia: a Nova Onda Oriental, em Porto Alegre, e a 32ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, exibem filmes que atestam o vigor do cinema asiático contemporâneo
O Mundo, de Jia Zhang-ke
Nos últimos dez anos, os cinéfilos do Ocidente vêm sendo surpreendidos com a descoberta de um notável conjunto de filmes assinados por diretores de nomes impronunciáveis, como Hou Hsiao-hsien, Apichatpong Weerasethakul, Jia Zhang-ke, Wang Bing, Bong Joon-ho, Hong Sang-soo, Eric Khoo, Rithy Panh ou Naomi Kawase. Em comum, estes filmes têm a peculiaridade de serem produzidos em países do Extremo Oriente (Taiwan, Tailândia, China, Coréia do Sul, Singapura, Camboja, Japão), causarem comoção nos grandes festivais internacionais e permanecerem, em sua maioria, ignorados pelos distribuidores brasileiros.
Embora o rótulo “cinema oriental” ou “cinema asiático” seja pouco adequado para dar conta de um grupo tão eclético de realizadores, cada qual com propostas estéticas muito particulares, é preciso reconhecer que a arte cinematográfica vive um momento privilegiado no outro lado do mundo. Se não chega a causar espanto o fato de potências econômicas como a China e o Japão estarem apresentando uma nova geração de talentos, o mesmo não se pode dizer de países pequenos e de pouca tradição cinematográfica como a Tailândia, Filipinas ou Singapura.
A evidente impossibilidade de dar conta de tantos filmes e diretores relevantes em um único artigo nos obriga a focar a atenção em quatro nomes, que há pouco tiveram seus trabalhos mais recentes exibidos no Brasil: os chineses Hou Hsiao-hsien e Jia Zhang-ke, o filipino Brillante Mendoza e o tailandês Apichatpong Weerasethakul.
Mulheres
tristes e ruínas
O descaso do circuito exibidor brasileiro em relação aos filmes de Hou Hsiao-hsien é um bom termômetro da nossa ainda precária condição cultural. Em outro contexto, a inclusão do veterano diretor (nascido na China em 1947, mas desde a infância radicado em Taiwan) num texto sobre novo cinema oriental seria no mínimo despropositada, em vista de sua vasta filmografia, que remonta ao início dos anos 80 e contabiliza cerca de 20 longas-metragens. Aqui, no entanto, o despropósito justifica-se, pela ignorância quase completa das platéias locais diante do cinema de Hsiao-hsien.
Embora já tivesse recebido o Leão de Ouro de melhor
filme no Festival de Veneza com A Cidade
do Desencanto (1989) e durante toda a década de 90 fosse presença constante
no Festival de Cannes – onde conquistou o Prêmio Especial do Júri por O Mestre das Marionetes (1993) –, é
somente após o sucesso internacional de Flores
de Xangai (1998) que o nome de Hou Hsiao-hsien passa a merecer maior
atenção do público ocidental. Desde então, ele vem produzindo sucessivas
obras-primas, a começar por Millennium
Mambo, de 2001.
O extremo rigor identificado na filmografia de Hou
Hsiao-hsien levou o governo do Japão a convidá-lo a assinar o filme em
homenagem ao centenário do cineasta Yasujiro Ozu, Café Lumière (2003). Para celebrar o mais rigoroso dos cineastas,
Hsiao-hsien oferece uma sutil releitura da obra-prima de Ozu, Era uma Vez emTóquio (1953). Reduz ao limite a trama original do diretor japonês
– pais viajam do interior a fim de visitar a filha que vive na capital – e
compõe uma verdadeira sinfonia da metrópole, onde o movimento dos trens e a
arquitetura opressiva da cidade adquirem a mesma importância que as deambulações
da protagonista pelas ruas de Tóquio.
Depois de Café
Lumière, Hsiao-hsien realizou Three
Times (2005), logo seguido por A
Viagem do Balão Vermelho (2007) – este último produzido na França, com
Juliette Binoche à frente do elenco. O lamentável fato de nenhum desses filmes
ter sido lançado no Brasil, nem mesmo no mercado doméstico, foi minimamente
contornado pelas mostras Oriente Desconhecido
(promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, Rio de
Janeiro e Brasília) e Ásia: A Nova Onda
Oriental (realizada em
Porto Alegre, por iniciativa da Secretaria Municipal da
Cultura). Em resplandecentes cópias em 35mm, os cinéfilos dessas quatro cidades
puderam conhecer Millennium Mambo e Three Times, dois dos mais inspirados
momentos da carreira de Hou Hsiao-hsien.
Millennium Mambo, de Hou Hsiao-hsien
Ambos os filmes são protagonizados pela estonteante Qi
Shu, que parece estar se tornando a atriz-fetiche do diretor (será a estrela de
seu próximo longa, The Assassin). Em Millennium Mambo, ela é Vicky, jovem dividida
entre dois homens, preenchendo o vazio das noites de Taipei com sexo, drogas e
música eletrônica, enquanto espera o novo milênio chegar. Nas três histórias de
Three Times, Qi Shu representa três personagens
que testemunham o fracasso de seus relacionamentos amorosos em diferentes
momentos da História (1911, 1966 e 2005). Em virtuosos planos-seqüência, elemento
marcante de seu cinema, Hou Hsiao-hsien acompanha os movimentos rigorosamente
coreografados dessas mulheres sempre tristes. Não importa o período histórico
em que vivam, as personagens femininas de Hsiao-hsien parecem destinadas à
infelicidade, seja pelas convenções sócio-culturais do passado (as cortesãs de Flores de Xangai e da segunda história
de Three Times), seja em virtude da
aridez de sentimentos nas metrópoles do século XXI (a menina grávida de Café Lumière, as personagens de
comportamento sexual livre de Millenium
Mambo ou da última história de Three
Times).
Ao contrário do que ocorria em seus filmes anteriores,
interessados em retratar os processos históricos e contradições da sociedade
taiwanesa, a partir do final dos anos 90 Hou Hsiao-hsien passa a privilegiar a
construção de atmosferas, colocando a narrativa em segundo plano e dirigindo
sua câmera aos pequenos detalhes. O espectador ingênuo poderá dizer que nada
acontece em Millennium Mambo ou Three Times, mas basta um olhar atento para
descobrir que aquelas histórias mínimas encerram um universo de possibilidades
sensoriais. Hsiao-hsien é um esteta que confia plenamente na força das imagens,
a ponto de dispensar a palavra no segundo episódio de Three Times, esta obra encharcada de melancolia, com enquadramentos
de beleza assombrosa, onde seu cinema atinge o ponto máximo de depuração
estética.
* * *
O rigor da encenação e
a preferência pelo plano-seqüência aproximam Hou Hsiao-hsien de Jia Zhang-ke
(1970), principal nome do cinema chinês
contemporâneo. Cineasta profícuo, com
apenas 38 anos de idade Zhang-ke ostenta oito longas-metragens em seu
currículo, e tem tido melhor sorte no Brasil que seu colega de Taiwan. Plataforma (2000) e Em Busca da Vida (2006) ganharam distribuição comercial no país. Exibido
na mostra Oriente Desconhecido, O Mundo (2004) costumava frequentar a grade
do canal Telecine, e em breve teremos a estreia nos cinemas do documentário Inútil (2007). Já seu último filme, 24 City (2008), esteve entre as atrações da 32ª Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro, justificando uma vez mais o
entusiasmo da crítica internacional em torno de seu nome.
Grande cronista do
processo de transformação pelo qual a China vem passando nos últimos anos, Jia
Zhang-ke é assumidamente influenciado pelo cinema de Robert Bresson (de quem aprendeu
lições sobre o uso do tempo e a preferência por trabalhar com atores
não-profissionais) e Michelangelo Antonioni (que o inspirou na construção do
espaço), embora muitos críticos insistam em associá-lo ao neo-realismo de
Roberto Rossellini. O diretor chinês também costuma ser elogiado por sua
habilidade em fazer uso da tecnologia digital, segundo ele a única
possibilidade de registrar as mudanças frenéticas que atualmente ocorrem na
China. Algo comprovado pela visão de O
Mundo, ambientado num parque temático nos arredores de Pequim, onde estão
reproduzidos alguns dos principais pontos turísticos do planeta. Naquele
cenário surreal, Zhang-re reúne um grupo variado de personagens, formado pelos
jovens empregados do parque, que devem lidar com diferentes dramas pessoais,
enquanto atuam em shows de gosto duvidoso, oferecidos aos visitantes do local
como uma alternativa para fazer turismo sem viajar. Irônico ao extremo, Zhang-ke
representa o mundo globalizado como um grandioso espetáculo kitsch, oferecendo um retrato preciso de
nossa atual condição de homens desterritorializados.
Em Busca da Vida, de Jia Zhang-ke
Em Busca da Vida, vencedor do Leão de Ouro no Festival de
Veneza em 2006, descrevia o impacto provocado pela construção da represa de Três
Gargantas no rio Yang-Tsé. Com 24 City,
Jia Zhang-ke volta a abordar o acelerado processo de mudanças em curso numa
China cada vez mais capitalista e industrializada. O filme acompanha o
fechamento de um complexo industrial que dará lugar a um condomínio de luxo. As
consequências da chegada do empreendimento naquela comunidade são mostradas
através de depoimentos de antigos funcionários da empresa e moradores da
região. Zhang-ke utiliza um procedimento semelhante ao de Eduardo Coutinho em Jogo de Cena (2007), misturando
depoimentos reais a outros encenados por atores – os “vasos comunicantes” de
Borges em ação, a ligar um veterano documentarista brasileiro a um jovem
cineasta chinês. Entre os depoimentos, imagens do desmonte da fábrica deixam
claro que Zhang-ke está interessado sobretudo em mostrar o rastro de destroços
deixado pela onda de progresso que varre a China. Já era assim em Em
Buscada Vida,
onde a gigantesca hidrelétrica de Três Gargantas permanecia sempre em segundo
plano, como em 24 City estão os
prédios do empreendimento imobiliário destinado aos novos ricos chineses. Edifícios
em ruínas, vilarejos abandonados, casas destruídas, montanhas de entulhos. São
estes cenários desolados que realmente traduzem o que está acontecendo hoje na
China. Discípulo aplicado do filósofo Walter Benjamin, para quem a História era
um acúmulo ininterrupto de ruína e destruição, Jia Zhang-ke funda seu cinema em
torno da dialética construção/desconstrução. E vem pouco a pouco forjando uma
obra de valor inestimável, não apenas pela sua relevância artística, mas por
assumir a responsabilidade de ser um testemunho dos dilemas do nosso tempo.
Sensualidade e mistério
A maior novidade vinda do Extremo Oriente está
relacionada à descoberta das emergentes cinematografias da Tailândia e das
Filipinas. Dois países pobres e de tradição conservadora, frequentemente subjugados
por governos ditatoriais, mas capazes de produzir um cinema de grande originalidade
e rigor estético.
Um arquipélago com cerca de sete mil ilhas, entre o Mar da China e o oceano Pacífico, as Filipinas tem seu “exotismo” amenizado diante dos olhos ocidentais por conta de sua colonização espanhola. O país, que hoje produz uma média de 40 longas-metragens por ano, foi colocado no mapa cinematográfico internacional graças a Lino Brocka (1939-1991). Primeiro diretor filipino a competir no Festival de Cannes, com Insiang (1976), um drama ambientado nas favelas de Manila, Brocka notabilizou-se ao denunciar em seus filmes os desmandos do ditador Ferdinand Marcos. Passados dez anos da morte de Brocka, um grupo de jovens realizadores, liderado por Lav Diaz e Brillante Mendoza, deu início a um movimento de retomada do cinema filipino, assinando uma série de filmes que logo começariam a ganhar visibilidade no circuito de festivais europeus.
Ambos os diretores apresentaram seus novos filmes na
32ª Mostra Internacional de São Paulo.Lav
Diaz trouxe o monumental Melancholia
(2008), com oito horas de duração. Reconhecido como o principal mentor
intelectual do novo cinema das Filipinas, o diretor é um bom exemplo da
radicalidade daquela cinematografia. Seus filmes anteriores, Evolution of a Filipino Family (2004), Heremias: The Legend of the Lizard Princess
(2006) e Death in the Land of the
Encantos (2007), todos longuíssimos, vêm chamando a atenção da crítica não
apenas pela sua prolixidade, mas sobretudo pela capacidade do diretor em
sustentar narrativas complexas, que navegam contra a corrente das regras
estabelecidas pelo mercado. Já Mendoza mostrou Serbis (2008), que teve sua primeira exibição no Brasil, depois de escandalizar
espectadores mais sensíveis na última edição do Festival de Cannes com a crueza
de suas cenas de sexo.
Antes de chegar à competição principal de Cannes,
Brillante Mendoza havia vencido o Festival de Locarno com O Massagista, em 2005. Serbis
é seu sexto longa-metragem. Aqui no Brasil, a exemplo do que já acontecera no
balneário francês em maio, o filme voltou a dividir opiniões. Azar de quem não
gostou. Desde Os Olhos da Cidade São Meus
(1987), de Bigas Luna, o cinema não era celebrado com tamanha visceralidade. Obras
como Serbis não almejam a
unanimidade. Mas aqueles espectadores adultos que, além do cinema, amam as
antigas salas onde os filmes de sua infância e juventude costumavam ser
exibidos, deverão se render integralmente a Mendoza. Serbis acompanha um dia na vida da família Pineda, proprietária de
uma sala dedicada à exibição de filmes pornográficos. Bem a propósito, a sala
chama-se “Family”, pois além de abrigar o negócio familiar, o decadente prédio –
cuja suntuosa arquitetura art déco denuncia
um passado de dias melhores – serve de moradia aos Pineda e seus agregados.
Neste ambiente caótico, a matriarca Nanay Flor (vivida pela atriz Gina Pareño, figura
de presença hierática, a lembrar uma Irene Papas filipina) deve administrar o convívio
dos filhos, netos e empregados com a animada audiência formada por prostitutas,
gays e travestis. Pois, como toda boa sala pornô, o Family também é um cinema
de pegação. Em suas dependências úmidas, as noções de público e privado se
embaralham (melhor seria dizer “interpenetram”, para nos mantermos fiéis ao
espírito de um filme onde a promiscuidade adquire um sentido positivo, até
mesmo vital). O sexo, a mais íntima das atividades humanas, transforma-se numa
experiência coletiva, o que o aproxima do cinema. Para Mendoza, o ritual de
sentar numa sala escura ao lado de pessoas estranhas, em busca de fortes
emoções sensoriais, pode ter a mesma intensidade da experiência sexual. Esta é
a questão central de Serbis e o que faz
dele um filme tão sedutor.
Serbis, de Brillante Mendoza
Encenador habilidoso, o diretor filipino sabe que um
dos aspectos mais fascinantes do cinema reside na sua capacidade de captar as
fricções entre corpo (do ator) e espaço (o cenário). Ao nos conduzir pelos
diversos recantos do Family, colando-nos aos personagens que lá circulam, Mendoza
torna praticamente palpáveis a viscosidade das paredes, a sujeira dos banheiros,
a decrepitude dos ambientes, o suor dos corpos. É surpreendente como aquele
universo fechado e a princípio distante – um cinema pornô nas Filipinas! – consegue
nos parecer tão próximo.
Filmado em locação (o prédio do Family realmente
existe e tem este nome), Serbis
também demonstra o apurado senso de Mendoza para as potencialidades expressivas
da cenografia, plenamente exploradas pelo competente trabalho da direção de
arte. O resultado é um filme físico, que produz um efeito “rosa púrpura do
Cairo”, sugando o espectador para dentro da tela.
* * *
Mas é da Tailândia, ao oeste das Filipinas, que vem
aquele que é o nome mais estimulante do cinema contemporâneo. A recente exibição
no Brasil de seus três principais filmes, Blissfully
Yours (2002), Mal dos Trópicos (2004)
e Síndromes e um Século (2006), vem
justificar o entusiasmo em torno desse jovem diretor, lançado pelo Festival de
Cannes e logo adotado pelos críticos franceses, Cahiers duCinéma à
frente, como de hábito.
Não há nada que se compare ao estranhamento e ao
impacto estético provocado pela descoberta da obra de Weerasethakul. Ao
contrário de outros realizadores superestimados pela crítica francesa, estamos
realmente diante de um cineasta-artista, alguém que tem algo a dizer sobre a
condição humana e busca novas formas para fazê-lo.
O cinema de Apichatpong Weerasethakul representa um
desafio constante para a crítica, porque está justamente interessado em
discutir a impossibilidade da interpretação. Em Mal dos Trópicos, o relacionamento homossexual entre um soldado e
um camponês dá lugar ao embate entre um homem-fera e seu caçador (vividos pela
mesma dupla de atores) na densa floresta tailandesa. Em Síndromes e um Século, um casal de médicos que mora na área rural
viverá situações novas ou semelhantes num hospital da cidade. As narrativas bipartidas
desses filmes funcionam como dípticos que ao serem simultaneamente observados instauram
novos sentidos a cada uma de suas partes, para em seguida anulá-los, num
processo infinito de ressignificação de símbolos e imagens. É isto que torna sua
revisão uma experiência sempre renovada.
Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul
Natureza e civilização, sujeito e objeto, instinto e
razão. Todas as categorias que fundamentam o pensamento ocidental são suspensas
por Weerasethakhul. Obra-enigma, empenhada em preservar o mistério e a
sensualidade do mundo, mas ao mesmo tempo capaz de provocar intensas
revelações. Quando, em Síndromes e um
Século, observamos incrédulos o porão de um hospital adquirindo lentamente
as dimensões metafísicas de um filme de ficção-científica jamais dirigido por
Andrei Tarkovski, estamos testemunhando um milagre da arte. Enfim o cinema avança.
* * *
Cinzas do PassadoRedux, de Wong Kar-wai
Curiosamente, este ano a Mostra de São Paulo também incluiu na sua programação a exibição de Cinzas do Passado Redux, de Wong Kar-wai. Nunca lançado no Brasil, Cinzas do Passado (1994) foi o filme que projetou Kar-wai no Ocidente, marcando o momento de eclosão do novo cinema asiático. Visto pela primeira vez na tela grande, em cópia restaurada digitalmente, tendo restituída toda a exuberância plástica de suas imagens, Cinzas do Passado traz o melhor (a exploração das relações entre tempo e memória) e o pior (a tendência ao maneirismo) de Kar-wai. Algo que logo poderá ser conferido por um número maior de espectadores, pois um distribuidor do centro do país já adquiriu seus direitos de exibição. Elevado à condição de diretor de culto após a acolhida calorosa a Felizes Juntos (1997) e Amor à Flor da Pele (2000) pelo circuito de salas de arte, Wong Kar-wai deixou de ser encarado como um investimento de risco. Com 25 anos de atraso, os amarelos acachapantes de Cinzas do Passado finalmente irão iluminar as telas dos cinemas brasileiros.
O reconhecimento de Veneza à obra imensa de Almodóvar
Um dos pontos altos da 76ª edição do Festival de Veneza, encerrada no último sábado, foi a entrega do Leão de Ouro em homenagem à carreira do diretor Pedro Almodóvar.
Em uma cerimônia marcada pela emoção, a cineasta argentina Lucrecia Martel homenageou seu colega, amigo e também produtor – desde AMeninaSanta (2004) – com um belíssimo texto, que reproduzimos aqui:
Almodóvar exibe seu Leão de Ouro, ao lado de Lucrecia Martel
“Estamos hoje reunidos para celebrar a Pedro Almodóvar.
Uso estas palavras, que são
as mesmas da missa católica, porque o cinema
é sua religião, ele disse
muitas vezes.
O cinema corrigia o que a
escola humilhava nele e em muitos meninos e
meninas.
Sua paróquia era o cinema
do bairro.
Nesse altar de luzes, de
canções pegajosas, dançavam as divas de todos os
tempos, que o protegeram da futilidade moral, como os santos deveriam
fazer.
Em uma reportagem você
disse que seguramente foi um menino muito
forte para suportar o
olhar da incompreensão.
O mais forte dos meninos.
Almodóvar foi a causa e a
consequência da Movida, a contracultura que
espanou a Espanha da longa
letargia do franquismo.
Combateram com as melhores
armas: filmes, revistas, livros, músicas,
festas. Muitas festas,
não?
Digo isto com nostalgia
daqueles anos 80 em que o desejo estava muito
menos organizado do que agora.
A saúde não era um bem
necessário. E a cidade era a aventura na qual as
pessoas deveriam se
lançar.
Era mais importante
aventurar-se em certas ruas do que ter um home
theater 5.1 para ver três temporadas de 11 capítulos.
Uma década com muitíssimo menos medo do que agora.
Em 45 anos, dirigiu e
escreveu mais de 30 filmes e curtas.
Suas invenções fazem parte
da memória da humanidade.
De uma sacola de armazém no México a uma embalagem de balas em Tóquio.
Todos sabemos que ele fez
cinema sem frequentar uma escola de cinema, e
festejamos essa carência.
Afinou seus ouvidos nas
fofocas dos salões de beleza, com as lavadeiras
do rio, em becos de
viciados insones, nas conversas dos vizinhos.
Para várias gerações de
diretores latino-americanos seu cinema foi uma
reconciliação com o
castelhano. Seus diálogos iluminaram a linguagem de
nossas próprias famílias.
Nos apontou o caminho requintado
que as cantoras populares como
Chavela, La Lupe, Mina,
abrem na trilha sonora.
Colecionou em sua infância
cromos ou figurinhas de divas do cinema,
impressos em cores
estridentes que, segundo ele, inspiraram sua
extravagante paleta de
cores.
Mas é impossível ver a
obra de Pedro Almodóvar sem se reconciliar com
os recantos de nossas casas onde naufraga a moda.
Os fundos horrorosos que
povoam nossas fotos familiares.
Nossas festas de quinze
anos, e seus penteados.
Almodóvar inundou nossa
memória com invenções que não necessitam de
grandes orçamentos, mas
sim de honestidade provinciana.
Esses livings com papéis
de parede enlouquecidos, os enfermeiros amantes,
os tapetes com estampas de animais, os penteados com laquê, as mulheres
assimétricas, os brincos em forma de cafeteira, nos tornaram mais livres.
Nos libertaram do bom
gosto, da boa educação, da moral mesquinha
daqueles que se dizem
normais.
Nos libertaram da clareza
dos laços familiares.
Nos reconciliaram com a
estupidez, com os refrões incompreensíveis, com
os mal-entendidos.
Muito antes de as
mulheres, os homossexuais, as trans, nos cansarmos
em massa do lugar miserável
que tínhamos na história, Pedro já nos tornara
heroínas.
Já havia reivindicado o
direito de nos inventarmos a nós mesmas.
Já havia colocado as
próteses de mama, os vibradores, ao lado de uma
concha ou de uma panela de
pressão, no mesmo nível de qualquer coisa
útil.
Agora ele está se ocupando dos homens, o que é fundamental.
Obrigada, Pedro!
Não há dever na ética de
Almodóvar, há obrigação de criar-se.
Obrigação de inventar-se.
Ele quebrou as convenções dos
gêneros do cinema, misturou-os,
elevou o melodrama acima
do drama.
Abraçou o ridículo para criar
uma arma sem precedentes contra o abuso.
Se aceitamos que o cinema
expande o mundo como o conhecemos, o
mundo cresceu muito desde
que Pedro lançou seus curtas em meados dos
anos 70.
Seus filmes inauguraram
territórios onde se pode viver melhor.
Mas agora, Pedro, que a
ultra direita se levanta no mundo como se nada
houvesse passado, agora,
mais do que nunca, te necessitamos.
Porque seguimos molhando
nossos biquínis em um mar de mortos.
João Carlos Castanha em cena do filme Castanha, de Davi Pretto
Em fevereiro de 2014, o cinema gaúcho viveu um momento histórico, com a exibição de Castanha no Festival de Berlim.
Dirigido por Davi Pretto, o filme protagonizado pelo ator João Carlos Castanha foi o primeiro longa-metragem feito no Rio Grande do Sul a ser selecionado para o prestigiado festival alemão, feito que depois seria repetido outras três vezes: em 2015, com Beira-Mar, de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon; em 2017, com Rifle, também de Davi Pretto; e em 2018, com Tinta Bruta, novamente da dupla Matzembacher/Reolon.
Para comemorar a recuperação de João Carlos Castanha – o ator deu um susto em seus amigos e fãs, permanecendo alguns dias na CTI em virtude de um grave problema respiratório -, resgato aqui o texto da cobertura da sessão de estreia de Castanha em Berlim, que fiz na ocasião para o jornal Zero Hora.
Foi muito emocionante poder acompanhar de perto a calorosa
recepção do filme pela plateia alemã, bem como testemunhar a felicidade de seu
protagonista ao ver seu talento reconhecido numa das principais vitrines do
cinema mundial.
LONGA-METRAGEM GAÚCHO CASTANHA
EMOCIONA PLATEIA NO FESTIVAL DE BERLIM
por Marcus Mello
Passava de meia-noite quando os espectadores que lotaram o CinemaxX 4 para assistir à primeira exibição do longa gaúcho Castanha no Festival de Berlim saíram da sala para encarar o frio do inverno alemão. Era o final de uma noite marcante para o público e, ao mesmo tempo, o promissor pontapé inicial na carreira do cineasta gaúcho Davi Pretto, 25 anos, que faz sua estreia em longa-metragem pela porta da frente.
Selecionado para a prestigiadíssima seção Fórum, que costuma privilegiar trabalhos de perfil mais autoral, assinados por diretores comprometidos com a pesquisa de linguagem (e que este ano conta com os novos filmes do coreano Bong Joon-ho, do americano Ken Jacobs e do romeno Corneliu Porumboiu), Castanha assinala desde já um momento histórico para a produção cinematográfica do Rio Grande do Sul – não apenas por ser o primeiro longa gaúcho a participar deste que é um dos três maiores festivais de cinema do mundo, ao lado de Cannes e Veneza, mas, sobretudo, por suas qualidades estéticas.
Com a segurança de um veterano, Davi Pretto cria um filme inclassificável, híbrido de documentário e ficção, em torno de seu protagonista, o ator João Carlos Castanha. Figura com larga trajetória no teatro local e conhecido animador de shows no underground gay porto-alegrense, Castanha interpreta a si próprio, em sequências que recriam o seu muitas vezes duro cotidiano com impressionante naturalidade.
A saúde frágil, a relação com a mãe, as dificuldades de trabalhar com arte em Porto Alegre, as conversas com amigos como os atores Lauro Ramalho e Zé Adão Barbosa, o drama de um sobrinho viciado em crack, tudo nos é apresentado pela encenação precisa do diretor, como se fôssemos indiscretos observadores de um show da vida real, em um procedimento semelhante ao realizado por Andrea Tonacci na obra-prima Serras da Desordem (2006).
A equipe de Castanha em Berlim: na primeira fila, da esquerda para a direita, o ator João Carlos Castanha, o diretor Davi Pretto, a produtora Paola Wink e o desenhista de som Tiago Bello; na segunda fileira, a produtora musical Rita Zart, o fotógrafo Glauco Firpo e o montador Bruno Carboni
A primeira sessão de Castanha em Berlim contou com a presença de vários membros da equipe do filme. Além de Davi Pretto e de Castanha (que, tomados pela emoção, choraram durante o debate), subiram ao palco a produtora Paola Wink, o desenhista de som Tiago Bello, o montador Bruno Carboni, o fotógrafo Glauco Firpo, o co-produtor e distribuidor Sandro Fiorin e a produtora musical Rita Zart.
O ator João Carlos Castanha, ao lado do diretor Davi Pretto, em debate após uma das sessões de Castanha no Festival de Berlim
Na plateia lotada, muitos gaúchos (como as produtoras Aletéia Selonk e Camila Gonzatto), o presidente da Ancine, Manoel Rangel, além de uma multidão de cinéfilos berlinenses, que já esgotou os ingressos de todas as quatro sessões programadas para o filme durante o festival, ao longo desta semana.
O evento prossegue até o próximo domingo.
O ator João Carlos Castanha foi capa da revista Teorema em janeiro de 2015
Em 2006, o espanhol Pedro Almodóvar foi objeto de uma grande homenagem na Cinemateca Francesa, em Paris. Além de uma retrospectiva integral de seus filmes, o diretor também foi tema de uma exposição e preparou uma Carte Blanche, selecionando 29 de seus filmes favoritos para serem exibidos no templo supremo da cinefilia mundial.
Esta “carta branca” incluiu diversos títulos citados ao longo da filmografia de Almodóvar, que, à época, estava lançando Volver, o 16º longa-metragem de sua carreira.
Abaixo a lista dos favoritos de Almodóvar naquele momento, seguida por pequenos comentários do diretor sobre algumas dessas obras que integram o seu panteão cinéfilo (extraídos do programa da Cinemateca Francesa):
Então é isso. A próxima vez que alguém pedir dica de série na Netflix, respire fundo três vezes e passe adiante a listinha de Almodóvar. Esse aí entende mesmo do riscado.
“Meus filmes são repletos de filmes. Há sempre uma
televisão que os exibe ou um cinema onde vão meus personagens. Todos os filmes
que aparecem nos meus filmes são meticulosamente escolhidos, eles fazem parte
do roteiro, eles desempenham um papel ativo. Não são homenagens a seus
realizadores, mas sim roubos, eu me aproprio de seus filmes em benefício da
história que eu conto.
Quando eu vou ao cinema e o filme me interessa, suas
imagens se tornam parte integrante da minha vida, da minha experiência, mesmo
que eu seja apenas um mero espectador. Esta Carta
Branca apresenta todos os filmes que aparecem nos meus filmes e explica as
razões pelas quais eu os escolhi. Há também alguns filmes que têm alguma
relação com a minha filmografia ou que me serviram de referência enquanto eu
escrevia ou filmava. E enfim eu escolhi alguns outros simplesmente porque
adoraria revê-los. Eu os deixo então saborear.”
Pedro Almodóvar
Os Filmes:
Pacto de Sangue, de Billy Wilder (1944)
Aurora, de F. W. Murnau
(1927)
Meia-Noite, de Mitchell Leisen (1939)
A Besta Humana, de Jean Renoir (1938)
Céline e Julie Vão de Barco, de Jacques Rivette (1974)
Desejo Humano, de Fritz Lang (1954)
Duelo ao Sol, de King Vidor (1946)
Essa Mulher, de Mario Camus (1969)
A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz (1950)
As Mulheres, de George Cukor (1939)
O Homem Ferido, de Patrice Chérau (1983)
Vampiros de Almas, de Don Siegel (1956)
Johnny Guitar, de Nicholas Ray (1954)
Horas de Desespero, de William Wyler (1955)
Imitação da Vida, de Douglas Sirk (1959)
Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger (1947)
Noite de Estreia, de John Cassavetes (1977)
Os Amores de Pandora, de Albert Lewin (1951)
Amar Foi Minha Ruína, de John M. Stahl (1945)
Pink Flamingos, de John Waters (1972)
Quem é Polly Maggoo?, de William Klein (1965)
Ricas e Famosas, de George Cukor (1981)
Rocco e seus Irmãos, de Luchino Visconti (1960)
Cúmplice das Sombras, de Joseph Losey (1951)
Sonata de Outono, de Ingmar Bergman (1978)
Ensaio de um Crime, de Luis Buñuel (1955)
No Silêncio da Noite, de Nicholas Ray (1950)
A Tortura do Medo, de Michael Powell (1960)
Wanda, de Barbara Loden (1970)
Alguns comentários deAlmodóvarsobre seus favoritos:
As Mulheres, de George Cukor
“Cukor foi um gênio no tratamento das personagens femininas.” Essa Mulher, de Mario Camus
“Melodrama hiperbólico, pontuado por canções, antologia do kitsch espanhol, a serviço de Sara Montiel, a maior atriz do nosso cinema entre os anos 50 e os anos 70.” . Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger
“Powell, sozinho ou com Pressburger, é um dos meus mestres. Em todos os meus filmes, eu peço ao diretor de fotografia que tome como referência a paleta de cores da fotografia de Jack Cardiff.” Meia-Noite, de Mitchell Leisen
“Perfeita ilustração da screwball comedy, ou comédia maluca. O melhor antídoto contra o tédio.” Johnny Guitar, de Nicholas Ray
“Pouco importa o gênero que ele aborde, Nicholas Ray é sempre original. Neste western exemplar, duas das pistolas são empunhadas por mulheres loucas de amor.”
Amar Foi Minha Ruína, de John M. Stahl
“O filme mais brutal sobre a paranóia do ciúme. É também um filme que alia dois gêneros que eu adoro e parecem tão distantes e diferentes, o melodrama e o thriller.” A Malvada, de Joseph L. Mankiewicz
“O título do filme Tudo Sobre Minha Mãe vem do título original de AMalvada, All AboutEve. Os dois filmes falam de mulheres e de atrizes. De mulheres que se confessam e mentem no camarim de um teatro, transformado em um sancta sanctorum do universo feminino.” Cúmplice das Sombras, de Joseph Losey
“Cúmplice das Sombras é um filme atípico na carreira de Joseph Losey. É um filme da série negra que trata de um culpado diante de si mesmo, face a sua consciência. Uma perspectiva sobre a culpa que eu jamais vi nesse gênero cinematográfico.” O Homem Ferido, de Patrice Chéreau
“Novamente, ‘o desejo’ enquanto abalo interior que domina inteiramente os indivíduos. O filme de Chéreau merece ser visto antes de mais nada para admirar o olhar faminto, curioso e aflito de Jean-Hugues Anglade, assim como o selvagem objeto de seu desejo, o igualmente maravilhoso Vittorio Mezzogiorno. A Lei do Desejo e O Homem Ferido ilustram de maneira notável os personagens condenados pela paixão, antes da época da AIDS.” Quem é Polly Maggoo?, de William Klein
“… Polly Maggooé a quintessência do movimento pop, com uma tomada de consciência.” Céline e Julie Vão de Barco, de Jacques Rivette
“Um filme que se banha em uma atmosfera feminina, uma espécie de história em quadrinhos em que o acaso é a lógica da narrativa.” Vampiros de Almas, de Don Siegel
“Vampiros de Almas representa para mim uma metáfora evidente da heroína. Eu testemunhei muitos drogados transformados em corpos sem alma, os olhos vazios, o rosto sem expressão, mortos-vivos como os bodysnatchers (ladrões de corpos)”. Sonata de Outono, de Ingmar Bergman
“Os eternos problemas mãe-filha, mesmo em Bergman, são quase sempre os problemas pai-filho. No cinema do mestre sueco, as piores crueldades se manifestam sempre no seio da família.”