Homem à beira de um ataque de nervos

Texto originalmente publicado na edição de número 31 da revista Teorema, lançada em agosto de 2019.

Salvador Mallo (Antonio Banderas) na piscina: mergulho existencial

Em 1995, Pedro Almodóvar concedeu uma entrevista à revista francesa Les Inrockuptibles, na qual evocava um episódio marcante da sua infância:

Como na nossa rua ninguém sabia ler nem escrever, minha mãe, que é muito esperta, montou uma espécie de empresa: ela e eu – que era muito adiantado para minha idade – escrevíamos cartas que os vizinhos ditavam e líamos as que recebiam. Depois minha mãe montou um negócio ainda mais sofisticado. Como eu era tão inteligente, já sabia tantas coisas, enquanto os outros não sabiam nada, ela fez de mim um professor primário. Por volta das nove horas da noite, depois do trabalho nos campos, as pessoas – que eram mais velhas que eu, tinham cerca de 15 a 20 anos – vinham à nossa casa, vestidas como se fossem ao médico, e eu as ensinava a ler, escrever e contar. O incrível é que minha mãe tivesse a ideia de fazer de mim um professor aos oito anos. [Risos.] Às vezes algumas das minhas atrizes vão à televisão e dizem: “Pedro é muito exigente, pede muito de nós”. Outro dia, ao ouvir isso, minha mãe comentou: “Elas dizem que ele é exigente, mas já era assim quando pequeno.” [Risos] Quando eu dava aula, as pessoas se queixavam: “Como Pedro é severo!” É muito divertido, eu devia fazer um filme sobre isso.

O resgate desta entrevista, cujo trecho está reproduzido no livro Conversas com Almodóvar, de Frédéric Strauss (Editora Zahar, 2008), torna-se oportuno agora, em 2019, quando chega aos cinemas Dor e Glória (Dolor y Gloria), vigésimo primeiro longa-metragem da festejada carreira do diretor espanhol. Sim, quase um quarto de século depois, e prestes a completar 70 anos de idade, Almodóvar finalmente realizou o filme que havia anunciado lá em meados da década de 90. Mas, ao contrário do que seu autor previa, “divertido” está longe de ser um termo adequado para descrevê-lo. Já maduro, carregando nos ombros um pesado fardo de sucessos, fracassos e perdas – incluindo a morte da mãe, Francisca Caballero, figura de notória importância na constituição de sua personalidade –, Almodóvar entrega com Dor e Glória uma obra grave e melancólica, certamente a mais introspectiva de sua extensa filmografia, na qual revê sua história íntima e artística, promovendo um necessário acerto de contas com o passado, mas também encarando a perspectiva da própria finitude.  

Dor e Glória tem como personagem central Salvador Mallo, um diretor de cinema em crise pessoal e profissional, que vive recluso em seu apartamento em Madrid. Acometido por sofrimentos físicos (enxaquecas, dores nas costas, engasgos) e existenciais, incapaz de superar a morte da mãe, tendo que lidar com as cicatrizes deixadas por amores fracassados e amizades desfeitas, Salvador é um homem atormentado, preso a um estado que beira a letargia, no limite de uma crise de nervos. Para dar vida a esse alter ego, Almodóvar escalou Antonio Banderas, parceiro de longa data que, embora tenha protagonizado uma série de superproduções em Hollywood a partir de meados dos anos 90, até hoje tem sua imagem associada ao diretor que o revelou. Além de Banderas, Almodóvar convocou outros nomes marcantes em sua trajetória, como Cecilia Roth, Penélope Cruz e Julieta Serrano – as duas últimas interpretando a mãe do diretor, na juventude e na maturidade. A fim de realizar essa revisão cinematográfica de seu passado, o diretor recorreu até mesmo a uma quase sósia de Carmen Maura, colaboradora constante em todos os filmes da fase inicial de sua carreira, com a qual romperia após um desentendimento à época da indicação de Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de Niervos, 1988) ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Nora Navas, que interpreta a assistente de Salvador Mallo, Mercedes, parece ser filha de Maura, tamanha é a semelhança entre as duas. Apesar de terem voltado a trabalhar juntos em Volver (2006), a relação de Almodóvar com sua atriz-fetiche nunca mais foi a mesma. Hoje com 73 anos, Maura teria sido uma das inspirações para o personagem de Alberto Crespo (Asier Etxeandia) – protagonista do filme fictício Sabor –, junto com Eusebio Poncela, ator de Matador (1986) e A Lei do Desejo (La Ley del Deseo, 1987), com quem Almodóvar também rompera. O que Maura pensou de ter uma sósia sua escalada para ser “assistente” da versão ficcional do diretor que a consagrou na década de 80 é algo que todavia permanece uma incógnita.

Mergulho no passado

O plano de abertura de Dor e Glória mostra Salvador Mallo de olhos fechados, no fundo de uma piscina. A imagem daquele corpo ainda belo, exibindo uma longa cicatriz cirúrgica nas costas e submerso na imensidão azul, já fornece alguns indícios sobre a jornada a ser percorrida pelo personagem em direção ao passado. O mergulho na água, como sabemos, simboliza um retorno às origens, guardando uma relação íntima com o útero materno, fonte de todas as coisas, um reservatório de energia capaz de provocar a regenerescência e a reintegração (ver Dicionário de Símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant). A fusão da água da piscina para a água do rio, onde agora vemos o menino Salvador (Asier Flores) observar a mãe (Penélope Cruz) lavando roupa em companhia de outras mulheres, revela o quanto o reencontro com as memórias de infância se constitui a base de sustentação do labirinto autoficcional projetado por Almodóvar.

Em seu retorno à superfície, Salvador nos apresenta, em voice over, um resumo dos problemas clínicos e emocionais que o conduziram ao estágio de semi paralisia no qual se encontra, incapaz de filmar ou mesmo de estabelecer qualquer tipo de contato social. Entretanto, um encontro casual com a atriz argentina Zulema – uma participação deliciosa de Cecilia Roth, uma das mais icônicas “chicas Almodóvar” – leva o personagem a encarar outro capítulo decisivo de sua existência, quando, já adulto, na década de 80, ganhou notoriedade como diretor de cinema ao assinar obras originais e transgressoras, tornando-se uma personalidade central da “movida madrileña”. Através de Zulema, Salvador descobre o endereço de Alberto Crespo, protagonista de Sabor, um êxito da fase inicial de sua carreira, com quem não fala há 32 anos. Insatisfeito com a interpretação de Alberto em Sabor, provocada por sua indisciplina e pela dependência em heroína do ator, ambos cortaram relações. Mas o convite para uma sessão comentada de uma cópia restaurada de Sabor na Filmoteca Espanhola faz com que Salvador volte a se aproximar de Alberto. As antigas desavenças entre os dois serão resolvidas em uma série de encontros regados a heroína, e o consumo da droga logo passa a fazer parte da rotina de Salvador.

Alberto Crespo (Asier Etxeandia) no palco: teatro e cinema ao som de Grace Jones

Em Dor e Glória as doses de heroína funcionam como as xícaras de chá com madeleines para o narrador de Proust, pois é o efeito entorpecente da droga que leva Salvador Mallo a viajar cada vez com maior frequência em busca do tempo perdido de sua infância, recuperando episódios fundamentais para a sua formação: o ingresso no coral da escola, o amor pelos livros e pelo cinema, o relacionamento com a mãe, as lições de escrita para o pedreiro Eduardo (César Vicente) e a descoberta do desejo. Ao mesmo tempo, ao reviver os acontecimentos de uma infância passada em um miserável vilarejo no interior da Espanha, Salvador começa a enfrentar alguns dos fantasmas de sua vida adulta, que incluem as feridas provocadas por seu conturbado envolvimento amoroso com um dependente químico (Leonardo Sbaraglia) e as questões não resolvidas com a mãe, incapaz de aceitar a homossexualidade do filho.

Devido ao acúmulo de elementos autobiográficos, muitos críticos têm se referido a Dor e Glória como o Oito e Meio (1963) de Almodóvar, comparando-o à obra-prima do italiano Federico Fellini sobre um diretor em crise criativa. Entretanto, um olhar mais atento vai identificar uma proximidade maior deste novo Almodóvar com o Fellini de Amarcord (1973), pela forma delicada como os diretores reencenam as experiências de sua própria infância, que surgem transfiguradas pela imaginação. Uma referência também evidente é o All That Jazz (1979) de Bob Fosse, afinal, menos do que um bloqueio de criatividade, o que de fato atormenta Salvador Mallo é a crise da maturidade, com a proximidade da velhice, e a consequente necessidade de lidar com a morte e com a perda da libido. É a ausência do desejo que conduz o personagem à imobilidade, à reclusão e à paralisia criativa. A cura virá, curiosamente, por meio do uso da droga, que vai possibilitar o mergulho na infância, trazendo à tona memórias recalcadas, e promover a reaproximação dos amigos – incluindo o reencontro com Federico, o grande amor da juventude, graças à intervenção de Alberto. Ao receber de Mercedes um convite para a abertura de uma exposição de arte, Salvador se depara com uma imagem que vai obrigá-lo a reviver um acontecimento fundamental, que talvez estivesse escondido em seu inconsciente. E é o resgate da experiência de seu primeiro desejo que fará com que este homem ferido volte enfim a viver e a criar novamente, recuperando a capacidade perdida de desejar.

O pequeno Salvador (Asier Flores): infância revisitada

 Se Almodóvar realmente atravessou um período de bloqueio criativo, Dor e Glória vem atestar que o mesmo foi superado. O filme se desenrola de maneira hipnótica, com uma sucessão de cenas de construção impecável, e traz pelo menos duas sequências dignas de antologia: a encenação teatral do monólogo O Vício por Alberto Crespo e o despertar sexual do menino Salvador, que culmina com seu desfalecimento ao se deparar com a nudez de Eduardo. A primeira delas tem início no palco de um teatro vazio, durante um ensaio. Alberto dança ao som de La Vie en Rose, na versão de Grace Jones, e em seguida surge já diante do público. O texto recitado, de tons autobiográficos, narra o conturbado relacionamento de Salvador Mallo com um jovem viciado em heroína, bem como o despertar de sua paixão pelo cinema, ainda na infância. Em uma tela ao fundo do palco são projetados trechos dos filmes Clamor do Sexo (Splendor in the Grass, Elia Kazan, 1961) e Torrente de Paixão (Niagara, Henry Hathaway, 1953), dois títulos que ocupam um lugar de destaque no panteão cinéfilo de Almodóvar. O rigor dos enquadramentos, o uso das cores, a hábil combinação entre as linguagens do teatro e do cinema, a escolha das músicas (com direito à gravação de Chavela Vargas para A Noite do meu Bem, de Dolores Duran) e a intensidade da performance de Asier Etxeandia provocam no espectador um estado de euforia estética raras vezes alcançado. O mesmo pode ser dito sobre a sequência-chave do filme, quando Salvador é fulminado pela experiência de sentir seu primeiro desejo. Em tempos de brutal retrocesso conservador, Almodóvar comete a ousadia de representar a atração sexual de uma criança em relação a um adulto, e o faz de forma frontal, sem qualquer subterfúgio. No caso, o desejo de um menino dirigido a outro homem, o pedreiro Eduardo, encenado por meio de uma precisa coreografia de corpos e olhares, com alta voltagem erótica e extrema delicadeza. Em termos de abordagem das questões envolvendo infância e sexualidade, nunca se viu nada igual no cinema, e isso devemos, uma vez mais, ao gênio de Almodóvar.

O pedreiro Eduardo (César Vicente): o “primeiro desejo” de Salvador

Quanto ao aspecto formal, o espanhol mantém o hábito de introduzir na narrativa algum procedimento inesperado. Desta vez, são as animações quase lisérgicas assinadas por Juan Gatti, que ilustram os diferentes problemas de saúde de Salvador, dando materialidade gráfica às dores do corpo e da alma que afligem o personagem através de um caleidoscópio de formas e cores exuberantes. Ou ainda a surpresa trazida pelo belíssimo plano final, quando se revela a peça pregada por Almodóvar em seus espectadores: todas as sequências de flashback relacionadas à infância de Salvador na verdade não passavam de um filme dentro do filme.

Já o domínio do diálogo, outro aspecto marcante no cinema de Almodóvar, se manifesta sobretudo no reencontro com o ex-amante e a série de conversas com a mãe enferma. São dois acertos de contas com um passado doloroso, um deles representado pelo homem de sua vida, e o outro pela mulher que lhe trouxe ao mundo e definiu sua personalidade, mas nunca conseguiu aceitar o seu estilo de vida. Cabe ressaltar que uma das maiores emoções proporcionadas por este Dor e Glória é a possibilidade de assistir ao reencontro de Almodóvar com a atriz Julieta Serrano, com quem o diretor não trabalhava há 30 anos. Ao lado de Antonio Banderas, Carmen Maura, Rossy de Palma e Chus Lampreave, Julieta Serrano foi uma presença constante na primeira – e mais transgressora – fase da carreira de Almodóvar, com participações inesquecíveis em sucessos como Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, no qual interpretava a esposa traída que cruzava as ruas de Madrid na carona de uma moto, com sua peruca ao vento e um revólver na bolsa, a fim de acertar contas com a amante do marido. Ver essa atriz extraordinária, que em duas outras ocasiões encarnou mães enlouquecidas de um então jovem Banderas (em Matador e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), aos 86 anos de idade, contracenando novamente com um Banderas já maduro, desta vez no papel de mãe de Salvador Mallo, alter ego do diretor que a apresentou ao mundo, é algo muito comovente, por possibilitar um reencontro com nossa própria juventude perdida.[1]

Salvador e a mãe (Julieta Serrano): acerto de contas

Como diz Denilson Lopes em seu artigo sobre o filme de Leonardo Mouramateus publicado nesta edição da Teorema, em Dor e Glória “há a arte, há o amor, há a amizade”. E há, acima de tudo, o cinema que salva, nesta reflexão madura sobre desejo, superação e o poder da criação contra a inevitabilidade do fim, realizada com uma combinação de humanidade e virtuosismo tão perfeita que só um artista da estatura de Pedro Almodóvar seria capaz de nos oferecer.

Marcus Mello


[1] Meu primeiro encontro com o cinema de Almodóvar se deu através da exibição de Matador durante uma mostra de cinema espanhol, promovida pelo Clube de Cinema de Porto Alegre no antigo Ponto de Cinema/SESC, em 1987. Embora Matador fosse o quinto longa do diretor (contagem que não inclui Folle… Folle… Fólleme Tim!, de 1978, filmado em Super 8), Almodóvar ainda era um completo desconhecido para os cinéfilos brasileiros. Até hoje guardo intacto na memória o impacto dessa descoberta cinematográfica da juventude. Também em 1987 o crítico Tuio Becker publicaria no jornal Universitário, em sua edição de novembro, o artigo “Apresentando Almodóvar”, que, salvo engano, foi o primeiro texto produzido no Rio Grande do Sul sobre o diretor, descrito então como o “Fassbinder da Espanha” (este texto está disponível no livro Sublime Obsessão, coletânea de artigos esparsos de Tuio Becker lançada em 2003 pela Coordenação de Cinema, Vídeo e Fotografia da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre e a Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul, dentro da coleção Escritos de Cinema).

A partir daí, Almodóvar se transformaria no “meu” cineasta, fui amadurecendo com ele, assisti à estreia de cada um de seus filmes, filmes que vi e revi muitas vezes, e que de certa forma me salvaram (assim como o cinema salvou o menino Salvador). Para um amante do cinema, não há privilégio maior do que poder acompanhar passo a passo a construção da filmografia de seu diretor de cabeceira.

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